domingo, 25 de setembro de 2011

Pra não dizer que não falei das torres

Beto Vianna

Procure uma data no Google. Vai encontrar rios de curiosidades, é claro, e você sempre irá botar significado maior ou menor em algumas delas, segundo suas próprias, particulares e cronometradas afeições. Mas é só comparar qualquer dessas datas com o tal 11/09 pra ver que tem alguma coisa estranha a respeito do tal 11/09. Ao contrário do 25 de abril, que só toca corações lusitanos (e o meu, que é desterrado), o 15 de maio, data-símbolo demasiado recente e demasiado espanhola, e até o 7 de setembro, que para arriba do Oiapoque e do Chuí abajo não passa de um 7 e de um setembro, o 11/09 quer de todo jeito ser universal. Quer virar marca. Luta pra isso, aliás.
Ilustração: Bira Dantas
A explicação mais rápida pra esse fetiche todo em torno do 11/09 (ou seja, da data em si, não do ocorrido na data) é o que Noam Chomsky chama de “mentalidade imperial”. É a cara-metade da “mentalidade colonial”, como o fenômeno é chamado na África: engolimos, sem resistência crítica, tudo o quanto seja fabricado na metrópole, de produtos manufaturados até conceitos, teorias sociológicas, e, porque não, datas comemorativas. Pois do lado de lá, a mesma imbecilidade impera. Meu pai adora lembrar que, nos EUA, o campeonato local de bentialtas é chamado World Series, e minha filha sempre se pergunta porque é que, nas internacionais salas de bate-papo, há internautas do México, do Gabão e da Irlanda, e, no entanto, outros são do Kansas, de LA (uma abreviatura!) e até do Wisconsin. Alguém tem lá de saber onde fica esse Wisconsin? É como chamar de “Universo” aquele terreno concurso de miss. Decerto porque essa baranguice teve início nos EUA (só pode) e lá já era alcunhado Miss Mundo, sobrando, para a fase mais planetária do concurso, o resto do cosmos.
Reis-na-barriga à parte, é preciso lembrar que (novamente bebo na fonte de Chomsky), a mentalidade imperial não se resume a bravatas megalomaníacas, a uma inofensiva síndrome de superman. A política externa dos EUA ativamente descompensa as balanças do direito internacional, tanto elevando à universal categoria de crime qualquer manifestação independentista em sua área de influência quanto, na direção oposta, diminuindo até à humilde invisibilidade os crimes cometidos pelo próprio Império. Como por exemplo, e por falar em 11/09, o assassinato de um tal Bin Laden.
É sobre um duplo pilar de absurdos que se assenta a glamurização do 11/09. De um lado a elevação, a proporções cataclísmicas, de um atentado em solo americano, desvalorizando um extenso histórico de ataques terroristas, golpes militares, massacres, invasões, bombardeios, desde o tenro século 19 até hoje: Filipinas, Dresden, Hiroshima, Coreia, a cubana Baía dos Porcos, Santiago do Chile, o Vietnã, a Granada caribenha, o Iraque. Nem vale a pena resumir a quilométrica lista. Todo essa sanguera espirrada fora dos EUA, e, o mais importante, pelos EUA. Não é irônico que a política externa norteamericana tenha se tornado mais estalinista que Stalin, nesse consequencialismo todo de “exportar a democracia”? De outro lado, e disso eu tenho ainda mais nojo, atrelada à valorização do 11/09 tem a campanha mais ou menos velada, pois tem muito do que se envergonhar, de demonização dos povos e das culturas árabes.
É curioso que essa data, a saber, o 11/09, tenha marcado eventos históricos bem mais impressionantes (se tivessem a Grande Mídia a seu lado), e mais esclarecedores (não fosse a mordaça da Grande Mídia) sobre essa nossa triste e antiga ladainha ocidental de, a um só tempo, esconder nossos crimes e inventar crimes pros outros.
Há uns 400 anos, Granada (a Granada espanhola) tinha a maior população de mouriscos (aqueles muçulmanos que, por força de uma força maior, se acristanaram) da Europa: 160 mil alminhas. A discriminação colocava em seu devido lugar, que é o lugar de baixo, um povo de cultura riquíssima, que escrevia espanhol em grafia árabe e falava um dialeto que ainda se pode entreouvir na voz andaluz. Ao lado das outras minorias igualmente marginalizadas pelo status quo cristão - os marranos judeus e os ciganos -, a mouriscada foi generosa o suficiente pra deixar de presente, pra nós, as delícias da arte e do folclore da Andaluzia e seu fruto mais saboroso: o flamenco. Pois a 11 de setembro de 1607, os paranóicos reis católicos, achando que essa gente diferente era uma ameaça à segurança nacional, decretaram sua expulsão de Valência, e logo de toda a Espanha.  
Ilustração: Bira Dantas
Em 11 de setembro de 1973, em um mundo que já reconhecemos como nosso semelhante, o mundo da comunicação de massa, das liberdades democráticas e da pílula anticoncepcional, era a vez de um governo democraticamente eleito tornar-se a ameaça à segurança nacional. Militares chilenos, apoiados pela CIA e bancados pelos mandarins do sistema produtivo e financeiro dos EUA, bombardeiam o palácio La Moneda, assassinam o presidente Salvador Allende e instauram uma ditadura truculenta, que deixou um legado de 30 mil mortos, torturados e desaparecidos.
E, então, é 11 de setembro de 2001. Um mundo já inteiramente nosso, o mundo midiatizado, globalizado e internetizado, assiste ao vivo e em cores o feio espetáculo de duas frondosas torres de aço se desmanchando no ar. Feio e triste. E tão feio e tão triste quanto 3 mil pessoas mortas pelos atentados é o acirramento da xenofobia, essa doença que pinta das piores cores os povos não-ocidentais. Os árabes, ou os muçulmanos, ou uma caricatura de ambos, transformam-se numa mistura improvável de fanáticos religiosos, degenerados morais e arquitetos diabólicos. Repetindo os reis espanhóis de quatro séculos atrás, o Ocidente torna a evitar o Oriente como o diabo foge da cruz. E nós, aqui no Brasil, esquecendo-nos que nossa formação cultural, étnica, e até emocional mais bebe nas raízes flamencas que nos nórdicos e louros senhores, esquecendo-nos que temos muito mais pés na África que fora dela, identificamo-nos com essa fantasia fora de tempo e de lugar. Ou, pelo menos, é o que a mídia imperial (de lá) e colonial (daqui), ansiosa por agradar seus patrões, quer nos fazer identificar.
Este mês é mês de 11 de setembro de 2011. Redondo aniversário de 10 anos, dizem alguns, do dia que tanto quer ser importante. Acho, ao contrário, que ligar o 11/09/11 àquele espetáculo sangrento em Nova York é injusto com a data. Prefiro pensar a data de outro modo. Lembrar que, neste ano, o ano repete o dia, com seus empinados “um e um”, suas duas torrezinhas ainda de pé. Ano em que povos árabes se levantaram contra seus regimes autoritários e farsantes, fantoches dos interesses externos na região. Ano em que os espanhóis do 15M soltaram seu grito em la calle, a la puerta del sol, desmascarando essa mesma democracia que (só por ser democracia) tem justificado tanto sangue e exploração. E ano interessante também pra nós, brasileiros, que de marcha em marcha - da maconha, das vagabundas, da liberdade - vamos renascendo para nossa dignidade há muito recolhida. E, se por mais não fosse, 11/09 é aniversário da mulher que eu amo. Devo então, tão somente, me alegrar com a data, derrubando duas torres com uma celebrada só.
 Publicado n'O Cometa Itabirano, 13/09/11