segunda-feira, 14 de novembro de 2011

La Habana e Karkar, 2062

Beto Vianna

Fidel, a um comando de voz, aciona o Ay-tele. Não esperava boas notícias do secretário-geral da OGU[1], em Guantánamo. Sabia que atrasos seriam inevitáveis, e a disponibilidade de plexiglas era limitada. Só não podia aceitar que o centenário da morte do Ernesto fosse prejudicado pela falta de criatividade das cooperativas industriais, ou pior, pela má vontade de um ou outro cooperário-diretor. Dava pra aguentar numa boa a escassez de material, a tecnologia sucateada e até a infra-estrutura antidiluviana. Mas a falta de rebolado, esse saudosismo de uma burocracia hipócrita, isso era imperdoável. Não éramos a Nova Jamaica? Os humanos do século 22? Pues sí, carajo, pensa Fidel. Mas disse, ¡Pues no, carajo! Criado em aldeia de fala tedesca, o secretário-geral quase esquece de acionar o tradutor, Es gibt kein Plexiglas, weder hier noch in China. Diesen Begriff es müss aus Fiberglas werden. E Fidel, ¡Pues no, carajo! Ni por encima de mi cadáver el Memorial será de fibra de vidrio, y colgó (perdão), e desligou.
O velho tava putíssimo. Só cinco anos faltando pra festa, será que ia ter coragem de lançar mão do último e vergonhoso recurso? Pedir prum setor industrial inteiro se complicar por consideração a ele? Fazer todo mundo, no mundo todo, doar trabalho e material para nada além de um mausoléu? A expensas de escolas, hospitais e até dos (¡No llegaremos a eso!) etnobordéis? Lembrou-se do centenário da revolução, poucos anos antes. Queria porque queria construir uma ponte comemorativa ligando Miami a Varadero. Tentou sensibilizar amigos no mundo inteiro pro que imaginava ser um marco da solidariedade entre os povos, um monumento à fraternidade internacional. Nem mesmo a preta Malia, a namorada, apoiou a ideia: There ain’t no nations, honey bunny... So, there’s no point celebrating them!
¡Coño!, pensa Fidel. Mas disse, Hermano mio... Do outro lado do Ay-tele, o brasileiro adivinhava a aflição do amigo (ou irmãozinho-mais-novo, como costumava chamá-lo). A ideia do plexiglas tinha sido do Oscar. Ele sabia das dificuldades de se conseguir o material, mas não ia mudar uma vírgula no projeto. Seja porque queria, de coração, o melhor na homenagem ao Ernesto, seja pra se divertir às custas do comandante. Eles eram assim, moleques. Em janeiro de 59, Fidel tinha aprontado feio pra cima do Oscar, no Complexo de Espetáculos Fora Lacerda (ninguém sabe direito a origem desse nome), a antiga Cidade Administrativa. Maior espaço para realização de shows do planeta, o Cesfola era a escolha óbvia pra se comemorar os cem anos da queda de Batista. Pois Fidel distribuiu caramelos entre a criançada de Belo Horizonte, preles fazerem cocô na cúpula do antigo auditório JK, projetado por Oscar há mais de 50 anos e hoje o cassino mais frequentado abaixo da linha do Equador. Estava garantida a diversão dos visitantes dentro e fora do prédio. No ¿Dónde está? Mapas dá pra ver a cúpula branquinha salpicada da mais genuína merda mineira. É a vez de Fidel levar o troco, pensou, Que sofra um tiquinho. No final tudo se arranjava.
No final tudo se arranja, irmãozinho-mais-novo. Por que não se distrai um pouquinho no Librodecara? Adicionei a filha da Dilma, lembra da Dilma? É, essa mesma. A menina me convidou prum evento, mas tou meio velho pressas baladas de finde. Curti não. Fidel se exasperava, Pero, hermano mio... mas respirou fundo, Sabes qué? Al final, eso del Librodecara me trajo una idea. Voy a crear una página pidiendo ayuda para la construción del Memorial. ¿Puedes invitar a tus amigos? No tengo más que 200, y ninguno en la industria de plexiglas. Pero tu eres el arquitecto, ¿verdad? Seguro que conoces un par de ellos. Oscar fareja a armadilha, Claro, faça isso, você vai se sentir melhor. Nos vemos amanhã no Mensajero, tá bom? Liga a Camera de Red lá pelas dezenove horas, horário de Brasília. Abraço forte, irmãozinho-mais-novo. O comandante enlouquece, suplica, Espérate, ¡no cuelgues! ¡Hermano! E entre dentes, Pendejo. Olha pela janela de seu pequeno apartamento no Malecón, e sente no rosto a refrescante brisa noturna do golfo. Lembra de quando havia Méxicos, de quando havia Cubas, Brasis e Bolívias. Lembra que o Ernesto lutara nos países, nunca pelos países. Le gustaría imenso ver como van las cosas hoy, divaga Fidel. Lembra que o povo cubano, mesmo não havendo Cuba, continua dando exemplo, principalmente agora. Diz pra si mesmo, enlevado, Nuestra tradicción centenaria de edificios y coches viejos, de la maquinaria obsoleta, de la falta de recursos... En 50 años de bloqueo, los imperialistas nos enseñaron a vivir plenamente, como nadie lo supo, en este admirable mundo nuevo, un mundo feliz... O devaneio se dissolve na voz doce da preta Malia, Come together, honey bunny... bed’s waiting for ya.
Do outro lado do mundo, na antiga Papua Nova Guiné, uma trama bem diferente se desenrola. Na ilha vulcânica de Karkar, uma vila inteira, inclusive as crianças em idadezinha escolar (ou, pra ser fiel aos fatos, principalmente elas), está envolvida num projeto ambicioso: o desenvolvimento do Ay-holo, o muito aguardado sucessor do Ay-tele e de gerações de comunicadores semelhantes. Versões diferentes do aparelho estavam em fase de teste, uma em cada escola da vila. As crianças já apresentaram seus videoinformes. Hoje, após uma baita festa com muita dança e comedoria, a comissão formada por um representante de cada uma das dezoito mil línguas do planeta dá o veredito, decidindo pelo modelo de Ay-holo mais comunidad-amigable. Claro, ganha pontos também o aparelho mais ecologicamente sensato, com melhor aproveitamento de matéria-prima abundante. Ay-holo de plexiglas, nem pensar.
O anúncio do modelo escolhido causa um tumulto que iria durar cinco dias na quase sempre pacata vila de Karkar. Embalado pela população momentaneamente decuplicada, o carnaval tomou conta da ilha e incendiou as pessoas. Alegria, alegria. É possível (nunca iremos saber) que o que incendiou mesmo as pessoas foi o discurso de Nikinu Keva, uma garotinha que, do alto dos seus oito anos, pediu a palavra logo após o lançamento do Ay-holo, transmitido pelo próprio aparelho para o mundo todo. Diz Nikinu, Binabati kita, ang aking maliit na paaralan mga kaibigan sa malapit (perdão, vou traduzir). Parabéns, coleguinhas da escola vizinha. O aparelho de vocês ficou bem mais legal que o nosso. Não sei se o material utilizado vai facilitar a vida do pessoal da indústria, mas a imagem ficou a mais perfeitinha, a mais sincronizada com a saída de voz, e isso faz uma diferença enorme. A tradução em tok pisin e até em takia, minha língua materna, estão impecáveis. Só espero que minha irmã não use o Ay-holo pra ligar pros colegas tomando banho, isso vai dar um problema danado lá em casa. Meu pai é meio careta, aquela cabecinha dos anos 2040, sabem? A falante imagem holográfica de Nikinu encantava, ao vivo e em formas, os corações dos quase 900 milhões de humanos da Terra, Mas o quero mesmo falar é sobre uma conversa que tivemos ontem, na aula de história. A gente sacou que, pra toda essa alegria de hoje ser possível, foi preciso muita luta dos nossos avós e bisavós.
Minha bisavó, que tá bem velhinha (não tanto quanto o vovô Fidel e muito menos o vovô Oscar!), conta histórias terríveis. De quando umas lonjuras enormes ficavam ajuntadas numas divisões chamadas países, e as pessoas precisavam de autorização pra ir dum país pro outro. De quando nas vilas, nas aldeias, não se podia usar a própria língua, tinha de se falar a língua do país! De quando era preciso pagar pra usar os aparelhos de mexer na internet, os aparelhos-de-diversão e até os comunicadores! Enquanto muitos passavam fome, tinham uns caras que ganhavam uma fortuna em papel-moeda e produtos refinados inventando e vendendo essas máquinas e programas, e as pessoas achavam eles geniais. Um tal de num-sei-quem Jobs, conta minha bisavó. E um tal de num-sei-quem Gates, num-sei-quem Zuckerberg e sei lá mais quens. Todos machos e brancos. Geniais! Acreditam? Nem eu, mas é a pura verdade, jura minha bisavó.
E nem contei o pior. Nessa época, imaginem vocês, atividades tão necessárias como o samba, o forró, o frevo e o maracatu, o waka, o highlife, o afrobeat e o juju, a lambada, a salsa, o fandango e o tango, eram consideradas exercícios menores (eles diziam culturais”), coisas pra se fazer só no intervalo das coisas-de-ganhar-dinheiro, pra se fazer só no finde. Cês podem acreditar nisso? Só no finde!

Ilustração: Daniel Torres

[1] Organización de las Gentes Unidas (N. do A.)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A invenção dos ladrões

para Juju

Há muitos e muitos anos, num tempo em que não existiam países, nem nomes de países, nem princesas, reis ou passaportes, havia uma aldeia em que as pessoas viviam felizes pero contentas, brincando juntas e partilhando os alimentos e os boizinhos de chuchu que faziam com perfeição. Um belo dia (ou nem tão belo assim), um homem, que era pra lá de doido, resolveu fazer uma cerca em volta da cabana dele, juntou todos os alimentos que estavam ali em volta da cabana dele (ele não sabia fazer boizinhos de chuchu) e até umas roupas velhas que ele costumava usar, e disse que tudo aquilo, de agora em diante, era “dele, só dele”.

As outras pessoas não entenderam nada dessa história das coisas serem “dele, só dele”, pois elas viviam felizes pero contentas, brincando juntas e partilhando os alimentos e os boizinhos de chuchu que faziam com perfeição, e, portanto, não entendiam como uma coisa podia ser “dele, só dele”. Mas como o homem era pra lá de doido, elas acharam o comportamento estranho dele perfeitamente normal e seguiram suas vidas. O problema é que sempre que um alimento ia parar perto da cabana do homem pra lá de doido, ele botava esse  alimento junto dos outros e dizia que era “dele, só dele”. Até um boizinho de chuchu, que o homem pra lá de doido não sabia fazer mas estava dando sopa ali pelas imediações da cabana do malucão, acabou virando coisa “dele, só dele”.

A coisa começou a ficar séria quando mais da metade dos alimentos da aldeia acabou do lado de dentro da cerca do homem pra lá de doido. Ele, que era doido mas de bobo não tinha nada, se fartava de comer e comer, e começou a acontecer uma coisa diferente com as outras pessoas da aldeia: elas começaram a passar fome. Quando a situação chegou num ponto de dar dó, e as crianças choravam de falta do que comer (tiveram até que comer todos os boizinhos de chuchu, menos aquele que era do homem pra lá de doido), a aldeia reuniu o conselho de anciãos (que naquela época era formado por crianças dos 3 aos 303 anos), que resolveu enviar uma comissão (essa foi a invenção das comissões) pra conversar com o homem pra lá de doido.

Conversa dali e daqui, ficou acertado assim: todo alimento seria do homem pra lá de doido. Pra poder comer um pouquinho, a maioria das pessoas da aldeia teria que trabalhar (essa foi a invenção do trabalho) pro homem pra lá de doido, coletando os alimentos “dele”, limpando a cabana “dele”, lavando a privada “dele” (daí surge o nome “propriedade privada”), remendando a cerca “dele” e fazendo, com perfeição, boizinhos de chuchu “dele”. Uma minoria ia virar a polícia (essa foi a invenção da polícia) pra garantir que ninguém ia roubar merda nenhuma da propriedade privada do homem pra lá de doido.

Roubar? Sim, porque algumas pessoas da aldeia não tavam nem aí pra decisão da comissão formada pelo conselho de anciãos (que era formado por crianças de 3 a 303 anos) e preferiam continuar felizes pero contentas, e, quando era de noitinha e tava todo mundo dormindo, iam lá na cabana do homem pra lá de doido, furavam a cerca, pegavam um monte de comida e de boizinhos de chuchu, e ficavam comendo e brincando até o dia clarear.

Tavam inventados os ladrões!







domingo, 25 de setembro de 2011

Pra não dizer que não falei das torres

Beto Vianna

Procure uma data no Google. Vai encontrar rios de curiosidades, é claro, e você sempre irá botar significado maior ou menor em algumas delas, segundo suas próprias, particulares e cronometradas afeições. Mas é só comparar qualquer dessas datas com o tal 11/09 pra ver que tem alguma coisa estranha a respeito do tal 11/09. Ao contrário do 25 de abril, que só toca corações lusitanos (e o meu, que é desterrado), o 15 de maio, data-símbolo demasiado recente e demasiado espanhola, e até o 7 de setembro, que para arriba do Oiapoque e do Chuí abajo não passa de um 7 e de um setembro, o 11/09 quer de todo jeito ser universal. Quer virar marca. Luta pra isso, aliás.
Ilustração: Bira Dantas
A explicação mais rápida pra esse fetiche todo em torno do 11/09 (ou seja, da data em si, não do ocorrido na data) é o que Noam Chomsky chama de “mentalidade imperial”. É a cara-metade da “mentalidade colonial”, como o fenômeno é chamado na África: engolimos, sem resistência crítica, tudo o quanto seja fabricado na metrópole, de produtos manufaturados até conceitos, teorias sociológicas, e, porque não, datas comemorativas. Pois do lado de lá, a mesma imbecilidade impera. Meu pai adora lembrar que, nos EUA, o campeonato local de bentialtas é chamado World Series, e minha filha sempre se pergunta porque é que, nas internacionais salas de bate-papo, há internautas do México, do Gabão e da Irlanda, e, no entanto, outros são do Kansas, de LA (uma abreviatura!) e até do Wisconsin. Alguém tem lá de saber onde fica esse Wisconsin? É como chamar de “Universo” aquele terreno concurso de miss. Decerto porque essa baranguice teve início nos EUA (só pode) e lá já era alcunhado Miss Mundo, sobrando, para a fase mais planetária do concurso, o resto do cosmos.
Reis-na-barriga à parte, é preciso lembrar que (novamente bebo na fonte de Chomsky), a mentalidade imperial não se resume a bravatas megalomaníacas, a uma inofensiva síndrome de superman. A política externa dos EUA ativamente descompensa as balanças do direito internacional, tanto elevando à universal categoria de crime qualquer manifestação independentista em sua área de influência quanto, na direção oposta, diminuindo até à humilde invisibilidade os crimes cometidos pelo próprio Império. Como por exemplo, e por falar em 11/09, o assassinato de um tal Bin Laden.
É sobre um duplo pilar de absurdos que se assenta a glamurização do 11/09. De um lado a elevação, a proporções cataclísmicas, de um atentado em solo americano, desvalorizando um extenso histórico de ataques terroristas, golpes militares, massacres, invasões, bombardeios, desde o tenro século 19 até hoje: Filipinas, Dresden, Hiroshima, Coreia, a cubana Baía dos Porcos, Santiago do Chile, o Vietnã, a Granada caribenha, o Iraque. Nem vale a pena resumir a quilométrica lista. Todo essa sanguera espirrada fora dos EUA, e, o mais importante, pelos EUA. Não é irônico que a política externa norteamericana tenha se tornado mais estalinista que Stalin, nesse consequencialismo todo de “exportar a democracia”? De outro lado, e disso eu tenho ainda mais nojo, atrelada à valorização do 11/09 tem a campanha mais ou menos velada, pois tem muito do que se envergonhar, de demonização dos povos e das culturas árabes.
É curioso que essa data, a saber, o 11/09, tenha marcado eventos históricos bem mais impressionantes (se tivessem a Grande Mídia a seu lado), e mais esclarecedores (não fosse a mordaça da Grande Mídia) sobre essa nossa triste e antiga ladainha ocidental de, a um só tempo, esconder nossos crimes e inventar crimes pros outros.
Há uns 400 anos, Granada (a Granada espanhola) tinha a maior população de mouriscos (aqueles muçulmanos que, por força de uma força maior, se acristanaram) da Europa: 160 mil alminhas. A discriminação colocava em seu devido lugar, que é o lugar de baixo, um povo de cultura riquíssima, que escrevia espanhol em grafia árabe e falava um dialeto que ainda se pode entreouvir na voz andaluz. Ao lado das outras minorias igualmente marginalizadas pelo status quo cristão - os marranos judeus e os ciganos -, a mouriscada foi generosa o suficiente pra deixar de presente, pra nós, as delícias da arte e do folclore da Andaluzia e seu fruto mais saboroso: o flamenco. Pois a 11 de setembro de 1607, os paranóicos reis católicos, achando que essa gente diferente era uma ameaça à segurança nacional, decretaram sua expulsão de Valência, e logo de toda a Espanha.  
Ilustração: Bira Dantas
Em 11 de setembro de 1973, em um mundo que já reconhecemos como nosso semelhante, o mundo da comunicação de massa, das liberdades democráticas e da pílula anticoncepcional, era a vez de um governo democraticamente eleito tornar-se a ameaça à segurança nacional. Militares chilenos, apoiados pela CIA e bancados pelos mandarins do sistema produtivo e financeiro dos EUA, bombardeiam o palácio La Moneda, assassinam o presidente Salvador Allende e instauram uma ditadura truculenta, que deixou um legado de 30 mil mortos, torturados e desaparecidos.
E, então, é 11 de setembro de 2001. Um mundo já inteiramente nosso, o mundo midiatizado, globalizado e internetizado, assiste ao vivo e em cores o feio espetáculo de duas frondosas torres de aço se desmanchando no ar. Feio e triste. E tão feio e tão triste quanto 3 mil pessoas mortas pelos atentados é o acirramento da xenofobia, essa doença que pinta das piores cores os povos não-ocidentais. Os árabes, ou os muçulmanos, ou uma caricatura de ambos, transformam-se numa mistura improvável de fanáticos religiosos, degenerados morais e arquitetos diabólicos. Repetindo os reis espanhóis de quatro séculos atrás, o Ocidente torna a evitar o Oriente como o diabo foge da cruz. E nós, aqui no Brasil, esquecendo-nos que nossa formação cultural, étnica, e até emocional mais bebe nas raízes flamencas que nos nórdicos e louros senhores, esquecendo-nos que temos muito mais pés na África que fora dela, identificamo-nos com essa fantasia fora de tempo e de lugar. Ou, pelo menos, é o que a mídia imperial (de lá) e colonial (daqui), ansiosa por agradar seus patrões, quer nos fazer identificar.
Este mês é mês de 11 de setembro de 2011. Redondo aniversário de 10 anos, dizem alguns, do dia que tanto quer ser importante. Acho, ao contrário, que ligar o 11/09/11 àquele espetáculo sangrento em Nova York é injusto com a data. Prefiro pensar a data de outro modo. Lembrar que, neste ano, o ano repete o dia, com seus empinados “um e um”, suas duas torrezinhas ainda de pé. Ano em que povos árabes se levantaram contra seus regimes autoritários e farsantes, fantoches dos interesses externos na região. Ano em que os espanhóis do 15M soltaram seu grito em la calle, a la puerta del sol, desmascarando essa mesma democracia que (só por ser democracia) tem justificado tanto sangue e exploração. E ano interessante também pra nós, brasileiros, que de marcha em marcha - da maconha, das vagabundas, da liberdade - vamos renascendo para nossa dignidade há muito recolhida. E, se por mais não fosse, 11/09 é aniversário da mulher que eu amo. Devo então, tão somente, me alegrar com a data, derrubando duas torres com uma celebrada só.
 Publicado n'O Cometa Itabirano, 13/09/11

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fela por todos nós, pecadores

beto vianna 

Ah, mas esse texto aqui não é sobre música. Não é sobre afrobeat, mesmo que tanto “afro” quanto “beat” tenham espaço de sobra no texto. Faço a advertência porque tenho de admitir como é estranho falar de Fela Anikulapo-Kuti ignorando, até onde é possível ignorar, a importância gigante desse artista nigeriano pro universo musical contemporâneo. O caso é que, para alguns raros gênios da arte, compreender o lugar especial que ocupam no mundo exige, por mais parcial, pobre e perverso que isso possa parecer, contornarmos a genial expressão artística e nos concentrarmos na força motriz dessa genialidade. No caso de Fela, e bota força motriz nisso, o motor é rigorosamente político. Mais que isso, Fela Kuti é um tapa de mão aberta (ou um baita beijo de língua) naquilo que aprendemos, com os gregos, a chamar de política. O gostoso mérito da biografia Fela: esta vida puta, do cubano Carlos Moore, (lançada aqui no Brasil, e em Belo Horizonte, quase 30 anos após a versão original) é botar generosos pingos nos is políticos do artista. 
Política é, ou bem deveria ser, a arte de conversar, escolher e promover a satisfação da polis, o diversificado e heterogêneo conjunto de habitantes da “cidade” (no sentido mais amplo, mas mais particular, do local onde as pessoas vivem e celebram juntas a vida). Arte essa, além disso - se é para ser boa arte -, praticada pelos próprios beneficiários do fazer artístico. Essa definição de política passa bem longe, e de fato é o oposto, da principesca arte de “conquistar, manter e exercer” o poder, ou governo, sobre ou em nome das pessoas, como sugere Maquiavel e tantos outros. Como fiz em um outro artigo meu, publicado num desses jornalões mineiros, vou chamar aqui de política só a primeira acepção, e, a segunda, de “desamor”.
Voltando ao Fela. O cara nasceu Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, da prestigiosa família Ransome-Kuti que inclui, entre outras sumidades culturais e políticas (ou desamorosas) nigerianas, o laureado Nobel em literatura Wole Soyinka, primo primeiro de Fela. Só que, para a gente iorubá, a gente de Fela, nome é um troço fundamental. Nós, neo-ocidentais, nos contentamos com os eternos mateuses, lucases, tomases e tiagos da Bíblia, ou nomes que “soam bem”, ou, se damos alguma trela pro significado, tascamos um nome hindu ou tupi-guarani, tão ao gosto de nossas hippices. Entre os iorubás, cerimônia das mais importantes, ombreando com o casamento e o enterro, é justamente a que dá nome à gurizada (me diverti muito, quando morava na Nigéria, indo a qualquer das três). O nome iorubá marca, acompanha e “faz” a pessoa pelo resto da vida e além. Em 1975, já metamorfoseado em borboleta libertária, Fela enterrou o sobrenome Ransome (que sabe lá Deus o que quer dizer), dado a seu avô, como “homenagem”, por um missionário cristão, e se rebatizou Anikulapo: aquele que traz a morte no bolso. E que morte é essa que Fela traz no bolso? Fela veio a este mundo dos vivos, o àiyé (leia “aiê”, descendo e subindo o tom), para matar o desamor, e, ouça o que eu digo, ele ainda vai conseguir, tenha ou não nosso herói morrido por conta da Aids em 97.

                                                                Arte: Arnaldo Stemberg

Outra sobre nomes: Fela Kuti nasceu duas vezes, cê acredita nisso? Eu acredito. Na biografia de Moore, Fela nos conta que a primeira vez que ele nasceu foi em 1935, batizado Hildegart. Esse menino, filho do pai e da mãe de Fela, viveu apenas duas semanas. E então Fela renasce em 1938, de nome, prenome e (depois) sobrenome iorubá. Fela acreditava piamente (e eu também) que ele tinha que ter morrido pra mostrar que não se dá a um iorubá, a um africano, a porcaria de um nome òyìnbó (leia “ôimbô”), um nome de branco, um nome colonial. E Fela tinha que renascer africano, africano não só pela Nigéria, ou por toda a África, mas pra matar o desamor em nós todos, brancos, pretos, amarelos e vermelhos. O cara veio ao mundo - e veio duas vezes - numa missão, sacou? E por falar em Nigéria, a última sobre nomes. O próprio nome Nigéria é emblemático na luta de Fela contra a mentalidade colonial. O Fela político, o Fela amoroso e panafricanista, sabia que um nome desses não tinha nada a ver com a África, que (diz ele na biografia) “… sem sacanagem, foi a esposa de um governante colonial que tirou essa palavra da cabeça ou de um chapéu” (Nigéria é corruptela de Niger area, área do rio Níger, que, por sua vez, vem de nigger, com toda a carga de racismo inglês incluída). E, no entanto, o nome é perversamente adequado, pois a Nigéria, tal como tantas outras “modernas nações” africanas, é uma sacana invenção neocolonial, separando gente que se sabe milenarmente inseparável, e juntando gente com incongruência também milenar.
Uma das muitas leituras medíocres que se faz de Fela é que o africanismo e o panafricanismo do artista, a sua deslumbrante e orgulhosamente expressa negritude, são atitudes unicamente direcionadas à questão da África, ou à causa das gentes pretas. Não é, não. Ao usar abertamente (e falar abertamente sobre) a maconha, ao desposar - em uma só cerimônia de casamento - 27 mulheres, ao rechear suas canções (não, não estou falando de música!) e declarações públicas com ofensas escabrosas às grandes potências, aos grandes líderes mundiais, às grandes corporações e aos covardes governantes africanos de mentalidade colonial, Fela está lançando um ataque massivo às bases dessa cultura desajeitada, desumana, desamorosa, que nós, ocidentais, vimos acochambrando nos últimos 500 anos. Pense, por exemplo, na poligamia de Fela, e como ela choca nossa cristã sensibilidade òyìnbó, e compare esse harém de mulheres independentes, inteligentes, respeitadas e corajosas com tantos casais ocidentais, hipocritamente estáveis, envergonhadamente machistas e ciumentamente monogâmicos que, principalmente nas classes médias e altas (os pobres sabem mais), mal concedem à mulher os papéis mais secundários e fúteis? 
Ainda estamos, timidamente, ao menos muitos de nós (e eu sei que agora o processo é irreversível), lutando pra fazer renascer esse “mundo África”, o mundo que, para Fela Kuti, é o mundo natural, o mundo óbvio do humano e do resto dos vivos. O mundo do corpo e o mundo da alma, e da celebração erótica de ambos. Se isso ainda é pecado, graças a Fela, já, já, vai deixar de ser.

publicado no Cometa Itabirano, julho de 2011

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Pecados da língua


A onda de xenofobia anti-indígena que tomou conta do Brasil é compreensível. Nossas elites cultivam um nacionalismo peculiar, e volta e meia descobrem ameaças que servem na medida para propósitos bem menos dignos. Veja as defesas, à esquerda e à direita, da língua portuguesa, contra estrangeirismos de todo tipo. Agora, por exemplo, mobilizam-se forças e recursos para a reforma ortográfica que, argumenta-se, irá fortalecer nosso patrimônio na economia lingüística mundial.

Costumamos ser menos patriotas em relação às barreiras que estabelecemos dentro do próprio quintal. Segundo o último Ethnologue (o catálogo lingüístico internacional), falam-se no Brasil 200 línguas, o que, se não torna o país campeão em diversidade (é baixo o índice de falantes) dá-lhe um honroso 10º lugar em números brutos. São umas 180 línguas nativas (uns 150 mil falantes) e, pra não dizer que só falei dos índios, Libras, japonês, italiano e alemão são faladas, cada uma, por centenas de milhares de brasileiros. 


Acontece que, oficialmente, aqui só se fala o português, um desastre para quem, por conta disso, é dificultado o acesso a serviços públicos, jurídicos, e outras burocracias. Mesmo usuários do português sofrem com a política lingüística. Tente passar em um concurso público utilizando a expressão “nós vai”. Essa é uma forma corriqueira em muitas variantes do português do Brasil, mas falar assim é falar errado, e não adianta nós, lingüístas, batermos o pé (se é que nos importamos com o mundo real).

Preconceito oficial, sendo oficial, não é preconceito. Você pode parar na cadeia se discriminar alguém pela cor, religião ou preferência sexual, mas é perfeitamente admissível (e obrigatório, em muitos casos) penalizar um brasileiro que não utilize o “português padrão”, mesmo que a maioria da população não domine esse precioso idioma. É claro, você pode perguntar se a “variante” de que falo não é, simplesmente, fruto da má educação. Ao que só posso rebater com três incômodas contra-perguntas: a) em que norma divina está registrada a variante correta do português (para a utilizarmos, com tanto rigor, contra seus não-usuários)?; b) onde foram parar os ideais de universalização da educação, proclamados por nossa elite condutora, desde o Império?; c) se não vamos mesmo universalizar a educação formal (e seu filhote, o português padrão), sua alternativa, ou seja, a valorização das culturas locais, tão na moda, é só para inglês ver?

Apesar dos avanços nos últimos governos - menção honrosa para Lula -, a população pobre (que, sabemos, é a maioria) continua duplamente penalizada: recebe a pior educação e, de outro lado, é barrada nos salões privê do português correto (que, sabemos, é onde está o dinheiro). Nacionalismo e patriotismo seriam palavras melhores se significassem inclusão dos brasileiros de carne e osso que aqui vivem, tenham olhos puxados, cabelos pixaim ou gramáticas populares.


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Falar árabe, ouvir português

Texto publicado em 27/02/11 no caderno Mundo do jornal O TEMPO - editora Alexandra Martins

Problemas de transliteração (traduzir entre dois sistemas de escrita) são café pequeno perto dos atuais embates no norte da África e Oriente Médio, onde se luta para desalojar os respectivos ditadores. Mas a discussão é boa, se lembrarmos que as mídias e a internet, quase sempre com um componente escrito (mesmo a TV), têm sido atores importantes desses movimentos sociais. Ao lidar com outros sistemas de escrita - como o do chinês ou do árabe - a transliteração é um guia da pronúncia original, e pode afetar a qualidade da informação. 

Além disso, a gente esquece que escrita não é língua, mas uma técnica, vagamente precisa, de registro da língua (uma confusão que alimenta, no Brasil, o preconceito contra variações “populares” da fala). Assim, a transliteração tem que ter um pé na pronúncia original, e outro no ouvido do leitor, isto é, nas regras de escrita da língua do leitor. Isso também pode se tornar uma questão política.

É difícil achar cinco jornais brasileiros que concordem na grafia de Muammar al-Kadafi (ou Gaddafi, Qadhafi...). Tudo bem. Há diferenças consonantais no árabe sem correspondente gráfico no português, e decisões diferentes são válidas, se se mantiver a coerência interna. Recentemente, um repórter da Folha (24/02/2011) justificou o padrão do jornal pelo uso semelhante no “britânico Financial Times e pela rede Al Jazeera”. 

Mas, como se vê em “Jazeera”, nem sempre a grafia do inglês segue as nossas regras. Língua e escrita são moeda política, e é preciso consumir com cautela padrões vindos de cima, seja do país de origem (como a China e seu sistema pinyin) ou de potências do noticiário internacional.