Não é preciso ouvir um dialeto de outro mundo pra não se entender uma só palavra. Eu, que sofro de quase surdez crônica, escuto quase tão bem em alemão quanto em português, ou seja, quase nada. Além daquilo que mora na fisiologia, podemos nos desentender por conta de incompatibilidades políticas, culturais, classistas, sexuais, o escambau. Já tentou conversar sobre o Fome Zero com seu vizinho tucano (ou vice-versa)? Ou sobre estética com aquela fã do Ivan Lins, se a sua onda é Beatles, como qualquer pessoa normal? Pra piorar, nem são bem os desencontros políticos, culturais ou de classe que impedem a interlocução bem-azeitada: é nossa disposição de não-conversar que sai rompendo, logo de cara, qualquer chance de entendimento. É dentro da própria linguagem que decidimos que não vamos escutar o que o outro diz, não por culpa de sistemas simbólicos previamente incompatíveis.
Não adianta tirar o cujo da reta e responsabilizar uma dificuldade “de língua” (ou de política, ou de cultura, ou de classe): essa bola sempre esteve mesmo com a gente. O diabo é a tal da nossa racionalidade arroz-à-grega, cristiana e western. Uma dessas invenções de nossa sapiência ocidental é o caráter “arbitrário” do signo lingüístico, ou seja, não há uma razão cósmica para dizermos isso em vez daquilo. Digo “vaca”, olhando para uma bovina e fêmea criatura, mas faço-o por mera convenção social, tanto que nos EUA dizem lá eles “cow”, apontando para a mesma senhora. O problema dessa lógica impecável é que faz diferença, sim, escolhermos dizer aquilo que dizemos e do jeito que dizemos. Foi o que George Orwell mostrou em 1984. A novilíngua orwelliana, bem mais realista que aquela pintada pelo establishment científico, é política. Ela diz, desdiz e re-diz, desfazendo ou re-fazendo o mundo que vivemos nessa mesma língua. Dito isso, não há nada mais velhaco da parte de um governo que proibir um vivente de usar a própria língua dentro da própria comunidade. E, por incrível que pareça, essa não é uma excentricidade sadô-fascista, mas a norma em sociedades re-ditas democráticas.
Pegue, por exemplo (escolhi o país ao acaso), o Brasil. Segundo a Constituição Federal, a língua e única língua oficial do Brasil é o português (/pohtu`ges/, para os fonéticos), significando que em repartições públicas, escolas públicas e banheiros públicos essa é a língua que você se arrisca a encontrar e um estrangeiro faria bem em aprender, pra não entrar num ladies achando que era um gentlemen. Oficialmente - é preciso frisar: oficialmente - o Brasil é um país monolingüe, e fim de papo. Fim de papo principalmente para os milhares de brasileiros que não falam o tal do português, e assim são privados de acesso às engrenagens da máquina pública, em suas mais sutis manifestações. Não estou com frescura de “preservação cultural”, falo de situações palpáveis e assustadoras. É no dia-a-dia que as pessoas vivem suas línguas, conhecendo, namorando, brigando, trabalhando, comendo e até dormindo, mas os donos do mundo sabem acabar com a festa numa penada.
O Brasil viveu e ainda vive a prática de se enfiar o bocejante monolingüismo goela abaixo de nossa vox populi. A primeira foi a disseminação das línguas gerais, baseadas em duas ou três línguas Tupi-Guarani do litoral brasileiro. Anchieta não foi culpado (sozinho), mas foi, sem dúvida, seu mais conhecido divulgador, escrevendo a Arte de gramatica da língoa mais usada na costa do Brasil, em 1595 (esse processo de gramaticização das línguas européias e não-européias alimentou dois fenômenos interligados da história humana: o conhecimento como forma de dominação e a instituição das ciências da linguagem, por mais que os lingüistas insistam que sua ciência nada faz ou fez além de “descrever fatos” da língua).
No processo de “entradas” pelo interior do país, foderam-se as índias e pariram-se falantes de língua geral, inclusive entre índios de falares totalmente distintos. Esses eram “tapuias”, bárbaros na novilíngua segregacionista brasílica: tupi or not-tupi. Minas Gerais foi desfraldada por faladores da língua geral paulista, e hoje sonhamos, pelos nomes de nossas geografias, que o tupi era a mui querida língua dos nativos daqui. Não era. Depois veio Marquês de Pombal e, mais cioso da língua da terrinha, deu o golpe final no palavrório selvagem: o alvo agora era o próprio tupi, atingindo, de quebra, os jesuítas e paulistas que o haviam disseminado. Há mais de 200 anos Pombal decretou que no Brasil fala-se, pois, o português, decreto que, como sabemos, sobrevive até hoje em nossa progressista Carta Magna.
Ao furacão pombalino sobreviveu uma língua geral, a amazônica. O nheengatu hoje é uma realidade para uns tantos povos amazonenses. Língua materna dos caboclos, língua de comunicação entre índios e cara-pálidas, entre índios de diferentes línguas, e peça de resistência dos índios que foram surrupiados de suas falas originais, como os Baré do Alto Rio Negro, que viviam uma língua aruak. Por sua vez, várias línguas indígenas, tupi or not, sobreviveram às línguas gerais. Há ainda no Brasil umas 180 línguas indígenas para uns 300 mil falantes, muitos deles vivendo a vida toda como estrangeiros em português, sem nunca terem deixado a própria terra.
O Paraguai abriga - oficialmente, ao lado do espanhol - sete milhões de pessoas que vivem suas vidas em guarani, a língua geral dali. Aqui a distribuição é mais desigual, desde as dezenas de milhares de falantes do guarani, do terena, e das línguas dos Yanomami, até o mínimo possível de um solitário falante. Entre um extremo e outro, o usual são línguas como o maxacali e seu milhar de usuários em Minas, povo que há centenas de anos insiste em conversar do seu próprio jeito, a despeito da surdez das leis em português. Esse é o quadro de um país de baixas concentrações de gente por língua, e ainda assim, campeão em diversidade lingüística, que é o resultado natural dos dentes institucionais cravados na jugular linguajeira de milhares de pessoas.
São Gabriel da Cachoeira é um dos maiores municípios do Brasil, mais de uma centena de quilômetros quadrados (maior que Santa Catarina) pra 35 mil alminhas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A esmagadora maioria dos são-gabrielenses ou têm o português como segunda língua ou nem entendem esse idioma. Ali você encontra, em compensação, falantes do nheengatu, do tukano e do baniwa. Apenas ontem, em novembro de 2006, esses falares foram reconhecidos como línguas oficiais de São Gabriel ao lado do português. Com a regulamentação, toda repartição pública é obrigada a atender nas quatro línguas, e campanhas publicitárias institucionais têm que ter a versão no quarteto (com a vantagem adicional de manter os marqueteiros, proficientes apenas em paulistano, longe desse mercado). A prefeitura tem de incentivar o uso dessas línguas nas escolas, nos meios de comunicação e nas instituições privadas, uma flecha envenenada bem no coração do padrão Bonner-Bernardes de comunicação.
Nem só de nativo-americanos vivem as muitas línguas brasileiras. Andando por aí você vai topar com o lancpatuá (crioulo do Amapá, baseado no francês), o talian (de estirpe vêneta, falado nas serras gaúchas), o Riograndenser Hunsrückisch (que tem pérolas como “Mariechen, mach die janela zu, es chuvt!” - tente traduzir), e os falares afrobrasileiros batucados por dezenas de comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil, frutos de uma história ao mesmo tempo feia e bonita, a gente sabe qual. Menção honrosa pra gira da Tabatinga, falar de origem bantu, ainda praticada na cidade de Bom Despacho. Até o inglês deixou marcas, graças à exploração do minério mineiro. Em Nova Lima ainda é possível ouvir um português britanizado por termos como “shauva” (ou algo parecido), por “pá”. E há o movimento oposto, de resistência ao anglicismo invasor: em Itabirito os trabalhadores das minas inventaram a “guinlagem camaco”, que troca as consoantes iniciais da primeira com as da segunda sílaba (por aí, tente traduzir o nome da língua).
Not least, o Brasil vive uma enormidade de dialetos do português, e nem assim são reconhecidos, pois amargam uma história de marginalização pela classe senhorial como língua corrompida, desleixada e por aí vai. Já ouviu falar nos dialeto caipira? Eu, i pussivelmenti ocê, falamu uma varianti deis, mas isso só é aceitado nos iscrito pós-moderno e nas revistinha do Chico Bento. No mais, é falar errado, que os doutos guardiões da inculta e bela só recomendam com cautela poética aos que trilham as primeiras letras. Êita.
Os dialetos surdo-mudos - as línguas de sinais - são considerados, por muita gente sabida, uma prótese lingüística, um Audisom receitado para quem sofre de não-língua. Óbvio, não é o caso. Não-surdos devem ter experiências inimaginadas pelos surdos no exercer de suas línguas, e vice-versa, mas o fazer-junto da língua é plenamente realizado em qualquer modalidade. Ou seja, os surdo-mudos realizam-se como comunidade humana na linguagem de sinais, e impedir essas pessoas de exercer sua lingua oficialmente é pura sacanagem. A Libras, língua de sinais dominante no Brasil, deu curtos passos nos governos FHC-Lula. A lei de 2002 é tímida (e tem um final esquisito: a Libras “não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. Haverá aí algum librasiano subversivo desenhando mãozinhas?) e o decreto sob Lula vai pouco além de mandar as repartições “garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva”. Se acha que é implicância minha, pergunte (se puder) a um falante da língua de sinais neo-zelandesa o que ele achou de seu país oficializar a NZSL, ao lado da indígena maori e da novata inglesa. A lei da Nova Zelândia, primeira no planeta, só passou em abril de 2006, o que mostra em que pé ainda estamos.
Costumamos pensar que “surdo-mudo” é uma daquelas categorias necessárias, pois, afinal, está no domínio da fisiologia, e não da cultura. Ou bem se escuta ou bem senão. Bom, nem todo mundo pensa-fala assim. No Maranhão vivem os Urubu-Ka´apor, que falam, além do ka´apor (que é tupi-guarani), uma língua de sinais. Um em cada 75 desses índios nasce surdo, e surdo pelos nossos padrões, pois ali esse vivente é considerado monolíngüe, em oposição ao restante da tribo. Esses são bilingües, e todos, crianças e tudo o mais, sinalizam com os mono-falantes (chamemos assim) e inclusive com índios de tribos vizinhas não-falantes de ka´apor, usando a sinalização como um tipo de língua geral.
Termino este babélico artigo com os Urubu-Ka´apor pois acho que aí há uma pequena mas apetitosa lição. Os surdos desse povo não são surdos em absoluto, e por um largo motivo: eles têm a sua língua plenamente reconhecida, e até amplamente conhecida, pelo restante da comunidade. É isso que distingue o ouvir em ka´apor do não-ouvir em português, pois toda diferença tem que fazer uma diferença na prática. Devíamos pensar-falar nisso toda vez que nos perguntamos que diferença faz usar uma língua ou outra, dizer isso em vez daquilo, dizer desse ou daquele modo, na vida das pessoas. Na prática.
Não adianta tirar o cujo da reta e responsabilizar uma dificuldade “de língua” (ou de política, ou de cultura, ou de classe): essa bola sempre esteve mesmo com a gente. O diabo é a tal da nossa racionalidade arroz-à-grega, cristiana e western. Uma dessas invenções de nossa sapiência ocidental é o caráter “arbitrário” do signo lingüístico, ou seja, não há uma razão cósmica para dizermos isso em vez daquilo. Digo “vaca”, olhando para uma bovina e fêmea criatura, mas faço-o por mera convenção social, tanto que nos EUA dizem lá eles “cow”, apontando para a mesma senhora. O problema dessa lógica impecável é que faz diferença, sim, escolhermos dizer aquilo que dizemos e do jeito que dizemos. Foi o que George Orwell mostrou em 1984. A novilíngua orwelliana, bem mais realista que aquela pintada pelo establishment científico, é política. Ela diz, desdiz e re-diz, desfazendo ou re-fazendo o mundo que vivemos nessa mesma língua. Dito isso, não há nada mais velhaco da parte de um governo que proibir um vivente de usar a própria língua dentro da própria comunidade. E, por incrível que pareça, essa não é uma excentricidade sadô-fascista, mas a norma em sociedades re-ditas democráticas.
Pegue, por exemplo (escolhi o país ao acaso), o Brasil. Segundo a Constituição Federal, a língua e única língua oficial do Brasil é o português (/pohtu`ges/, para os fonéticos), significando que em repartições públicas, escolas públicas e banheiros públicos essa é a língua que você se arrisca a encontrar e um estrangeiro faria bem em aprender, pra não entrar num ladies achando que era um gentlemen. Oficialmente - é preciso frisar: oficialmente - o Brasil é um país monolingüe, e fim de papo. Fim de papo principalmente para os milhares de brasileiros que não falam o tal do português, e assim são privados de acesso às engrenagens da máquina pública, em suas mais sutis manifestações. Não estou com frescura de “preservação cultural”, falo de situações palpáveis e assustadoras. É no dia-a-dia que as pessoas vivem suas línguas, conhecendo, namorando, brigando, trabalhando, comendo e até dormindo, mas os donos do mundo sabem acabar com a festa numa penada.
O Brasil viveu e ainda vive a prática de se enfiar o bocejante monolingüismo goela abaixo de nossa vox populi. A primeira foi a disseminação das línguas gerais, baseadas em duas ou três línguas Tupi-Guarani do litoral brasileiro. Anchieta não foi culpado (sozinho), mas foi, sem dúvida, seu mais conhecido divulgador, escrevendo a Arte de gramatica da língoa mais usada na costa do Brasil, em 1595 (esse processo de gramaticização das línguas européias e não-européias alimentou dois fenômenos interligados da história humana: o conhecimento como forma de dominação e a instituição das ciências da linguagem, por mais que os lingüistas insistam que sua ciência nada faz ou fez além de “descrever fatos” da língua).
No processo de “entradas” pelo interior do país, foderam-se as índias e pariram-se falantes de língua geral, inclusive entre índios de falares totalmente distintos. Esses eram “tapuias”, bárbaros na novilíngua segregacionista brasílica: tupi or not-tupi. Minas Gerais foi desfraldada por faladores da língua geral paulista, e hoje sonhamos, pelos nomes de nossas geografias, que o tupi era a mui querida língua dos nativos daqui. Não era. Depois veio Marquês de Pombal e, mais cioso da língua da terrinha, deu o golpe final no palavrório selvagem: o alvo agora era o próprio tupi, atingindo, de quebra, os jesuítas e paulistas que o haviam disseminado. Há mais de 200 anos Pombal decretou que no Brasil fala-se, pois, o português, decreto que, como sabemos, sobrevive até hoje em nossa progressista Carta Magna.
Ao furacão pombalino sobreviveu uma língua geral, a amazônica. O nheengatu hoje é uma realidade para uns tantos povos amazonenses. Língua materna dos caboclos, língua de comunicação entre índios e cara-pálidas, entre índios de diferentes línguas, e peça de resistência dos índios que foram surrupiados de suas falas originais, como os Baré do Alto Rio Negro, que viviam uma língua aruak. Por sua vez, várias línguas indígenas, tupi or not, sobreviveram às línguas gerais. Há ainda no Brasil umas 180 línguas indígenas para uns 300 mil falantes, muitos deles vivendo a vida toda como estrangeiros em português, sem nunca terem deixado a própria terra.
O Paraguai abriga - oficialmente, ao lado do espanhol - sete milhões de pessoas que vivem suas vidas em guarani, a língua geral dali. Aqui a distribuição é mais desigual, desde as dezenas de milhares de falantes do guarani, do terena, e das línguas dos Yanomami, até o mínimo possível de um solitário falante. Entre um extremo e outro, o usual são línguas como o maxacali e seu milhar de usuários em Minas, povo que há centenas de anos insiste em conversar do seu próprio jeito, a despeito da surdez das leis em português. Esse é o quadro de um país de baixas concentrações de gente por língua, e ainda assim, campeão em diversidade lingüística, que é o resultado natural dos dentes institucionais cravados na jugular linguajeira de milhares de pessoas.
São Gabriel da Cachoeira é um dos maiores municípios do Brasil, mais de uma centena de quilômetros quadrados (maior que Santa Catarina) pra 35 mil alminhas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. A esmagadora maioria dos são-gabrielenses ou têm o português como segunda língua ou nem entendem esse idioma. Ali você encontra, em compensação, falantes do nheengatu, do tukano e do baniwa. Apenas ontem, em novembro de 2006, esses falares foram reconhecidos como línguas oficiais de São Gabriel ao lado do português. Com a regulamentação, toda repartição pública é obrigada a atender nas quatro línguas, e campanhas publicitárias institucionais têm que ter a versão no quarteto (com a vantagem adicional de manter os marqueteiros, proficientes apenas em paulistano, longe desse mercado). A prefeitura tem de incentivar o uso dessas línguas nas escolas, nos meios de comunicação e nas instituições privadas, uma flecha envenenada bem no coração do padrão Bonner-Bernardes de comunicação.
Nem só de nativo-americanos vivem as muitas línguas brasileiras. Andando por aí você vai topar com o lancpatuá (crioulo do Amapá, baseado no francês), o talian (de estirpe vêneta, falado nas serras gaúchas), o Riograndenser Hunsrückisch (que tem pérolas como “Mariechen, mach die janela zu, es chuvt!” - tente traduzir), e os falares afrobrasileiros batucados por dezenas de comunidades quilombolas espalhadas pelo Brasil, frutos de uma história ao mesmo tempo feia e bonita, a gente sabe qual. Menção honrosa pra gira da Tabatinga, falar de origem bantu, ainda praticada na cidade de Bom Despacho. Até o inglês deixou marcas, graças à exploração do minério mineiro. Em Nova Lima ainda é possível ouvir um português britanizado por termos como “shauva” (ou algo parecido), por “pá”. E há o movimento oposto, de resistência ao anglicismo invasor: em Itabirito os trabalhadores das minas inventaram a “guinlagem camaco”, que troca as consoantes iniciais da primeira com as da segunda sílaba (por aí, tente traduzir o nome da língua).
Not least, o Brasil vive uma enormidade de dialetos do português, e nem assim são reconhecidos, pois amargam uma história de marginalização pela classe senhorial como língua corrompida, desleixada e por aí vai. Já ouviu falar nos dialeto caipira? Eu, i pussivelmenti ocê, falamu uma varianti deis, mas isso só é aceitado nos iscrito pós-moderno e nas revistinha do Chico Bento. No mais, é falar errado, que os doutos guardiões da inculta e bela só recomendam com cautela poética aos que trilham as primeiras letras. Êita.
Os dialetos surdo-mudos - as línguas de sinais - são considerados, por muita gente sabida, uma prótese lingüística, um Audisom receitado para quem sofre de não-língua. Óbvio, não é o caso. Não-surdos devem ter experiências inimaginadas pelos surdos no exercer de suas línguas, e vice-versa, mas o fazer-junto da língua é plenamente realizado em qualquer modalidade. Ou seja, os surdo-mudos realizam-se como comunidade humana na linguagem de sinais, e impedir essas pessoas de exercer sua lingua oficialmente é pura sacanagem. A Libras, língua de sinais dominante no Brasil, deu curtos passos nos governos FHC-Lula. A lei de 2002 é tímida (e tem um final esquisito: a Libras “não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. Haverá aí algum librasiano subversivo desenhando mãozinhas?) e o decreto sob Lula vai pouco além de mandar as repartições “garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva”. Se acha que é implicância minha, pergunte (se puder) a um falante da língua de sinais neo-zelandesa o que ele achou de seu país oficializar a NZSL, ao lado da indígena maori e da novata inglesa. A lei da Nova Zelândia, primeira no planeta, só passou em abril de 2006, o que mostra em que pé ainda estamos.
Costumamos pensar que “surdo-mudo” é uma daquelas categorias necessárias, pois, afinal, está no domínio da fisiologia, e não da cultura. Ou bem se escuta ou bem senão. Bom, nem todo mundo pensa-fala assim. No Maranhão vivem os Urubu-Ka´apor, que falam, além do ka´apor (que é tupi-guarani), uma língua de sinais. Um em cada 75 desses índios nasce surdo, e surdo pelos nossos padrões, pois ali esse vivente é considerado monolíngüe, em oposição ao restante da tribo. Esses são bilingües, e todos, crianças e tudo o mais, sinalizam com os mono-falantes (chamemos assim) e inclusive com índios de tribos vizinhas não-falantes de ka´apor, usando a sinalização como um tipo de língua geral.
Termino este babélico artigo com os Urubu-Ka´apor pois acho que aí há uma pequena mas apetitosa lição. Os surdos desse povo não são surdos em absoluto, e por um largo motivo: eles têm a sua língua plenamente reconhecida, e até amplamente conhecida, pelo restante da comunidade. É isso que distingue o ouvir em ka´apor do não-ouvir em português, pois toda diferença tem que fazer uma diferença na prática. Devíamos pensar-falar nisso toda vez que nos perguntamos que diferença faz usar uma língua ou outra, dizer isso em vez daquilo, dizer desse ou daquele modo, na vida das pessoas. Na prática.
Publicado em O Cometa Itabirano, fevereiro de 2007