Buteco é um lugar. Um troço óbvio demais pra se dizer, mas pra mim tem um ponto aí que vale a pena, que merece o sofrimento da obviedade. Buteco, botica, bodega, adega (e também butique, mas aí já pisamos fora do lugar do assunto) são relinguagens filhas do Lácio, portuguesas, castellanas e galegas, do grego apotheke, que por sua vez linguageia um lugar, o espaço onde produtos são guardados e comercializados, o armazém.
Mas todo mundo sabe que buteco também é um ponto de venda de água-que-passarinho-não-bebe, de filhas-do-senhor-do-engenho e outras coisas proibidas pra menores de 18, drogas de vários e sublimes tipos. A ingestão do fármacon, sabemos desde O Nome da Rosa, tem efeitos variáveis segundo a constituição da droga, a dose administrada, e a constituição-emoção do paciente, com todas as infinitas possibilidades de inter-relação entre os três.
Dose pra leão” é uma das muitas descrições que fazemos dessa complexidade irredutível. A inter-relação do fármacon com o usuário cura, anestesia, alegra, entristece, entorpece, alucina, ilumina e mata (a ordem não tem que ser essa). A “mudança de estado” é, então, o que mais chama atenção nesse encontro entre organismo e droga, mas porque teria que ser assim, se, enquanto organismos, estamos mudando mesmo de qualquer jeito? Novamente, as línguas se entrelaçam e enredam a gente.
Esse mundinho moderno, tecno-pop (e por isso mais pobre) em que vivemos, vive o fetiche da tipologia, da separação científica entre as coisas, como se toda atitude ou emoção nossa tivesse já um encaixe prévio nas categorias do mundo: disque 1 pra conhecer nossa linha de produtos, disque 2 pra emitir a fatura, disque 3 pra falar com um de nossos atendentes (que, geralmente, é apenas mais um robô inútil, eletrônico ou vivente).
Nesse mundo pré-alucinado, perderam-se os nomes dos lugares, dos espaços, pois a convivência saiu de moda e deu lugar ao produto, à tipologia do fármacon. A botica virou farmácia (na Alemanha, diga-se, apotheke continua sendo o nome do lugar), ou, então, cervejaria, chopperia ou café. Cuidado ao entrar em uma “loja de café” em Amsterdam, o cafezinho mesmo serve só como boca-de-pito pro cigarrinho, que é o ponto alto dessa botica holandesa.
É aí que o buteco entra, ou, melhor dizendo, é aí que a gente entra no buteco. Essa nobilíssima instituição, apesar de todas as deploráveis distorções de carros parados na porta em alto e ruim som, mantém-se fiel à sua santa etimologia: é um lugar de gente encontrando com gente, de exercício da conversa, um espaço de convivência, enfim, e, de quebra, às vezes até de boa comida e de boa cachaça, drogas excelentes se não extrapolarmos muito do prescrito na bula. Ainda bem, a cidade em que vivo, Belo Horizonte, ainda mantém essa instituição (e a maioria dos seus usuários) de pé.
Como saideira, só uma curiosidade, e um pedacinho de relato de viagem. Em castellano diz-se ainda “bodega” como nome do lugar, como armazém. Havana é mais conhecida como a capital da única ilha digna desse nome no mundo, pois vive cercada de ortodoxia por todos lados. E nessa cidade tem um lugar que permaneceu lugar, La Bodeguita del Medio. Mundialmente famosa pelo delicioso marketing cubano em cima do escritor e usuário de rum Ernest Hemingway (meu mojito na Bodeguita... meu daiquiri na Floridita), La Bodeguita tem o nome que tem pois era, originalmente, um armazém situado no ponto médio de uma típica ruazinha de Habana Vieja. Pois Hemingway, centenas de outros mais, e milhares de outros menos famosos que ele, seguiram usando a bodega como buteco (de fato, butiquim, ou botiquinha, pra ser fiel ao diminutivo nome). O lugar está lá, e por isso é, além de buteco, ponto turístico, onde dá pra gente ir, conversar, ouvir música boa (não, os cubanos não usam seus velhos carros para infernizar a porta dos butecos) e alegrar-se com o belo fármacon preparado ali, el mojito. Tal como em Belo Horizonte.
Publicado no especial "Comida di Buteco" do Cometa Itabirano (2007)