segunda-feira, 14 de novembro de 2011

La Habana e Karkar, 2062

Beto Vianna

Fidel, a um comando de voz, aciona o Ay-tele. Não esperava boas notícias do secretário-geral da OGU[1], em Guantánamo. Sabia que atrasos seriam inevitáveis, e a disponibilidade de plexiglas era limitada. Só não podia aceitar que o centenário da morte do Ernesto fosse prejudicado pela falta de criatividade das cooperativas industriais, ou pior, pela má vontade de um ou outro cooperário-diretor. Dava pra aguentar numa boa a escassez de material, a tecnologia sucateada e até a infra-estrutura antidiluviana. Mas a falta de rebolado, esse saudosismo de uma burocracia hipócrita, isso era imperdoável. Não éramos a Nova Jamaica? Os humanos do século 22? Pues sí, carajo, pensa Fidel. Mas disse, ¡Pues no, carajo! Criado em aldeia de fala tedesca, o secretário-geral quase esquece de acionar o tradutor, Es gibt kein Plexiglas, weder hier noch in China. Diesen Begriff es müss aus Fiberglas werden. E Fidel, ¡Pues no, carajo! Ni por encima de mi cadáver el Memorial será de fibra de vidrio, y colgó (perdão), e desligou.
O velho tava putíssimo. Só cinco anos faltando pra festa, será que ia ter coragem de lançar mão do último e vergonhoso recurso? Pedir prum setor industrial inteiro se complicar por consideração a ele? Fazer todo mundo, no mundo todo, doar trabalho e material para nada além de um mausoléu? A expensas de escolas, hospitais e até dos (¡No llegaremos a eso!) etnobordéis? Lembrou-se do centenário da revolução, poucos anos antes. Queria porque queria construir uma ponte comemorativa ligando Miami a Varadero. Tentou sensibilizar amigos no mundo inteiro pro que imaginava ser um marco da solidariedade entre os povos, um monumento à fraternidade internacional. Nem mesmo a preta Malia, a namorada, apoiou a ideia: There ain’t no nations, honey bunny... So, there’s no point celebrating them!
¡Coño!, pensa Fidel. Mas disse, Hermano mio... Do outro lado do Ay-tele, o brasileiro adivinhava a aflição do amigo (ou irmãozinho-mais-novo, como costumava chamá-lo). A ideia do plexiglas tinha sido do Oscar. Ele sabia das dificuldades de se conseguir o material, mas não ia mudar uma vírgula no projeto. Seja porque queria, de coração, o melhor na homenagem ao Ernesto, seja pra se divertir às custas do comandante. Eles eram assim, moleques. Em janeiro de 59, Fidel tinha aprontado feio pra cima do Oscar, no Complexo de Espetáculos Fora Lacerda (ninguém sabe direito a origem desse nome), a antiga Cidade Administrativa. Maior espaço para realização de shows do planeta, o Cesfola era a escolha óbvia pra se comemorar os cem anos da queda de Batista. Pois Fidel distribuiu caramelos entre a criançada de Belo Horizonte, preles fazerem cocô na cúpula do antigo auditório JK, projetado por Oscar há mais de 50 anos e hoje o cassino mais frequentado abaixo da linha do Equador. Estava garantida a diversão dos visitantes dentro e fora do prédio. No ¿Dónde está? Mapas dá pra ver a cúpula branquinha salpicada da mais genuína merda mineira. É a vez de Fidel levar o troco, pensou, Que sofra um tiquinho. No final tudo se arranjava.
No final tudo se arranja, irmãozinho-mais-novo. Por que não se distrai um pouquinho no Librodecara? Adicionei a filha da Dilma, lembra da Dilma? É, essa mesma. A menina me convidou prum evento, mas tou meio velho pressas baladas de finde. Curti não. Fidel se exasperava, Pero, hermano mio... mas respirou fundo, Sabes qué? Al final, eso del Librodecara me trajo una idea. Voy a crear una página pidiendo ayuda para la construción del Memorial. ¿Puedes invitar a tus amigos? No tengo más que 200, y ninguno en la industria de plexiglas. Pero tu eres el arquitecto, ¿verdad? Seguro que conoces un par de ellos. Oscar fareja a armadilha, Claro, faça isso, você vai se sentir melhor. Nos vemos amanhã no Mensajero, tá bom? Liga a Camera de Red lá pelas dezenove horas, horário de Brasília. Abraço forte, irmãozinho-mais-novo. O comandante enlouquece, suplica, Espérate, ¡no cuelgues! ¡Hermano! E entre dentes, Pendejo. Olha pela janela de seu pequeno apartamento no Malecón, e sente no rosto a refrescante brisa noturna do golfo. Lembra de quando havia Méxicos, de quando havia Cubas, Brasis e Bolívias. Lembra que o Ernesto lutara nos países, nunca pelos países. Le gustaría imenso ver como van las cosas hoy, divaga Fidel. Lembra que o povo cubano, mesmo não havendo Cuba, continua dando exemplo, principalmente agora. Diz pra si mesmo, enlevado, Nuestra tradicción centenaria de edificios y coches viejos, de la maquinaria obsoleta, de la falta de recursos... En 50 años de bloqueo, los imperialistas nos enseñaron a vivir plenamente, como nadie lo supo, en este admirable mundo nuevo, un mundo feliz... O devaneio se dissolve na voz doce da preta Malia, Come together, honey bunny... bed’s waiting for ya.
Do outro lado do mundo, na antiga Papua Nova Guiné, uma trama bem diferente se desenrola. Na ilha vulcânica de Karkar, uma vila inteira, inclusive as crianças em idadezinha escolar (ou, pra ser fiel aos fatos, principalmente elas), está envolvida num projeto ambicioso: o desenvolvimento do Ay-holo, o muito aguardado sucessor do Ay-tele e de gerações de comunicadores semelhantes. Versões diferentes do aparelho estavam em fase de teste, uma em cada escola da vila. As crianças já apresentaram seus videoinformes. Hoje, após uma baita festa com muita dança e comedoria, a comissão formada por um representante de cada uma das dezoito mil línguas do planeta dá o veredito, decidindo pelo modelo de Ay-holo mais comunidad-amigable. Claro, ganha pontos também o aparelho mais ecologicamente sensato, com melhor aproveitamento de matéria-prima abundante. Ay-holo de plexiglas, nem pensar.
O anúncio do modelo escolhido causa um tumulto que iria durar cinco dias na quase sempre pacata vila de Karkar. Embalado pela população momentaneamente decuplicada, o carnaval tomou conta da ilha e incendiou as pessoas. Alegria, alegria. É possível (nunca iremos saber) que o que incendiou mesmo as pessoas foi o discurso de Nikinu Keva, uma garotinha que, do alto dos seus oito anos, pediu a palavra logo após o lançamento do Ay-holo, transmitido pelo próprio aparelho para o mundo todo. Diz Nikinu, Binabati kita, ang aking maliit na paaralan mga kaibigan sa malapit (perdão, vou traduzir). Parabéns, coleguinhas da escola vizinha. O aparelho de vocês ficou bem mais legal que o nosso. Não sei se o material utilizado vai facilitar a vida do pessoal da indústria, mas a imagem ficou a mais perfeitinha, a mais sincronizada com a saída de voz, e isso faz uma diferença enorme. A tradução em tok pisin e até em takia, minha língua materna, estão impecáveis. Só espero que minha irmã não use o Ay-holo pra ligar pros colegas tomando banho, isso vai dar um problema danado lá em casa. Meu pai é meio careta, aquela cabecinha dos anos 2040, sabem? A falante imagem holográfica de Nikinu encantava, ao vivo e em formas, os corações dos quase 900 milhões de humanos da Terra, Mas o quero mesmo falar é sobre uma conversa que tivemos ontem, na aula de história. A gente sacou que, pra toda essa alegria de hoje ser possível, foi preciso muita luta dos nossos avós e bisavós.
Minha bisavó, que tá bem velhinha (não tanto quanto o vovô Fidel e muito menos o vovô Oscar!), conta histórias terríveis. De quando umas lonjuras enormes ficavam ajuntadas numas divisões chamadas países, e as pessoas precisavam de autorização pra ir dum país pro outro. De quando nas vilas, nas aldeias, não se podia usar a própria língua, tinha de se falar a língua do país! De quando era preciso pagar pra usar os aparelhos de mexer na internet, os aparelhos-de-diversão e até os comunicadores! Enquanto muitos passavam fome, tinham uns caras que ganhavam uma fortuna em papel-moeda e produtos refinados inventando e vendendo essas máquinas e programas, e as pessoas achavam eles geniais. Um tal de num-sei-quem Jobs, conta minha bisavó. E um tal de num-sei-quem Gates, num-sei-quem Zuckerberg e sei lá mais quens. Todos machos e brancos. Geniais! Acreditam? Nem eu, mas é a pura verdade, jura minha bisavó.
E nem contei o pior. Nessa época, imaginem vocês, atividades tão necessárias como o samba, o forró, o frevo e o maracatu, o waka, o highlife, o afrobeat e o juju, a lambada, a salsa, o fandango e o tango, eram consideradas exercícios menores (eles diziam culturais”), coisas pra se fazer só no intervalo das coisas-de-ganhar-dinheiro, pra se fazer só no finde. Cês podem acreditar nisso? Só no finde!

Ilustração: Daniel Torres

[1] Organización de las Gentes Unidas (N. do A.)