segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fela por todos nós, pecadores

beto vianna 

Ah, mas esse texto aqui não é sobre música. Não é sobre afrobeat, mesmo que tanto “afro” quanto “beat” tenham espaço de sobra no texto. Faço a advertência porque tenho de admitir como é estranho falar de Fela Anikulapo-Kuti ignorando, até onde é possível ignorar, a importância gigante desse artista nigeriano pro universo musical contemporâneo. O caso é que, para alguns raros gênios da arte, compreender o lugar especial que ocupam no mundo exige, por mais parcial, pobre e perverso que isso possa parecer, contornarmos a genial expressão artística e nos concentrarmos na força motriz dessa genialidade. No caso de Fela, e bota força motriz nisso, o motor é rigorosamente político. Mais que isso, Fela Kuti é um tapa de mão aberta (ou um baita beijo de língua) naquilo que aprendemos, com os gregos, a chamar de política. O gostoso mérito da biografia Fela: esta vida puta, do cubano Carlos Moore, (lançada aqui no Brasil, e em Belo Horizonte, quase 30 anos após a versão original) é botar generosos pingos nos is políticos do artista. 
Política é, ou bem deveria ser, a arte de conversar, escolher e promover a satisfação da polis, o diversificado e heterogêneo conjunto de habitantes da “cidade” (no sentido mais amplo, mas mais particular, do local onde as pessoas vivem e celebram juntas a vida). Arte essa, além disso - se é para ser boa arte -, praticada pelos próprios beneficiários do fazer artístico. Essa definição de política passa bem longe, e de fato é o oposto, da principesca arte de “conquistar, manter e exercer” o poder, ou governo, sobre ou em nome das pessoas, como sugere Maquiavel e tantos outros. Como fiz em um outro artigo meu, publicado num desses jornalões mineiros, vou chamar aqui de política só a primeira acepção, e, a segunda, de “desamor”.
Voltando ao Fela. O cara nasceu Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, da prestigiosa família Ransome-Kuti que inclui, entre outras sumidades culturais e políticas (ou desamorosas) nigerianas, o laureado Nobel em literatura Wole Soyinka, primo primeiro de Fela. Só que, para a gente iorubá, a gente de Fela, nome é um troço fundamental. Nós, neo-ocidentais, nos contentamos com os eternos mateuses, lucases, tomases e tiagos da Bíblia, ou nomes que “soam bem”, ou, se damos alguma trela pro significado, tascamos um nome hindu ou tupi-guarani, tão ao gosto de nossas hippices. Entre os iorubás, cerimônia das mais importantes, ombreando com o casamento e o enterro, é justamente a que dá nome à gurizada (me diverti muito, quando morava na Nigéria, indo a qualquer das três). O nome iorubá marca, acompanha e “faz” a pessoa pelo resto da vida e além. Em 1975, já metamorfoseado em borboleta libertária, Fela enterrou o sobrenome Ransome (que sabe lá Deus o que quer dizer), dado a seu avô, como “homenagem”, por um missionário cristão, e se rebatizou Anikulapo: aquele que traz a morte no bolso. E que morte é essa que Fela traz no bolso? Fela veio a este mundo dos vivos, o àiyé (leia “aiê”, descendo e subindo o tom), para matar o desamor, e, ouça o que eu digo, ele ainda vai conseguir, tenha ou não nosso herói morrido por conta da Aids em 97.

                                                                Arte: Arnaldo Stemberg

Outra sobre nomes: Fela Kuti nasceu duas vezes, cê acredita nisso? Eu acredito. Na biografia de Moore, Fela nos conta que a primeira vez que ele nasceu foi em 1935, batizado Hildegart. Esse menino, filho do pai e da mãe de Fela, viveu apenas duas semanas. E então Fela renasce em 1938, de nome, prenome e (depois) sobrenome iorubá. Fela acreditava piamente (e eu também) que ele tinha que ter morrido pra mostrar que não se dá a um iorubá, a um africano, a porcaria de um nome òyìnbó (leia “ôimbô”), um nome de branco, um nome colonial. E Fela tinha que renascer africano, africano não só pela Nigéria, ou por toda a África, mas pra matar o desamor em nós todos, brancos, pretos, amarelos e vermelhos. O cara veio ao mundo - e veio duas vezes - numa missão, sacou? E por falar em Nigéria, a última sobre nomes. O próprio nome Nigéria é emblemático na luta de Fela contra a mentalidade colonial. O Fela político, o Fela amoroso e panafricanista, sabia que um nome desses não tinha nada a ver com a África, que (diz ele na biografia) “… sem sacanagem, foi a esposa de um governante colonial que tirou essa palavra da cabeça ou de um chapéu” (Nigéria é corruptela de Niger area, área do rio Níger, que, por sua vez, vem de nigger, com toda a carga de racismo inglês incluída). E, no entanto, o nome é perversamente adequado, pois a Nigéria, tal como tantas outras “modernas nações” africanas, é uma sacana invenção neocolonial, separando gente que se sabe milenarmente inseparável, e juntando gente com incongruência também milenar.
Uma das muitas leituras medíocres que se faz de Fela é que o africanismo e o panafricanismo do artista, a sua deslumbrante e orgulhosamente expressa negritude, são atitudes unicamente direcionadas à questão da África, ou à causa das gentes pretas. Não é, não. Ao usar abertamente (e falar abertamente sobre) a maconha, ao desposar - em uma só cerimônia de casamento - 27 mulheres, ao rechear suas canções (não, não estou falando de música!) e declarações públicas com ofensas escabrosas às grandes potências, aos grandes líderes mundiais, às grandes corporações e aos covardes governantes africanos de mentalidade colonial, Fela está lançando um ataque massivo às bases dessa cultura desajeitada, desumana, desamorosa, que nós, ocidentais, vimos acochambrando nos últimos 500 anos. Pense, por exemplo, na poligamia de Fela, e como ela choca nossa cristã sensibilidade òyìnbó, e compare esse harém de mulheres independentes, inteligentes, respeitadas e corajosas com tantos casais ocidentais, hipocritamente estáveis, envergonhadamente machistas e ciumentamente monogâmicos que, principalmente nas classes médias e altas (os pobres sabem mais), mal concedem à mulher os papéis mais secundários e fúteis? 
Ainda estamos, timidamente, ao menos muitos de nós (e eu sei que agora o processo é irreversível), lutando pra fazer renascer esse “mundo África”, o mundo que, para Fela Kuti, é o mundo natural, o mundo óbvio do humano e do resto dos vivos. O mundo do corpo e o mundo da alma, e da celebração erótica de ambos. Se isso ainda é pecado, graças a Fela, já, já, vai deixar de ser.

publicado no Cometa Itabirano, julho de 2011