sexta-feira, 25 de abril de 2014

No cravo e na ferradura



Amanhã, 25 de abril de 2014, Portugal celebra 40 anos do fim de uma ditadura que durou 40 anos. Qual o significado de transitar de um regime ditatorial para um democrático? Melhor perguntando, qual a diferença entre ditadura e democracia?
Gostamos do governo do povo. Mas o que conhecemos por democracia sempre funcionou na intermediação entre os representados e as decisões tomadas. No jogo de uma sociedade de proprietários, em que só estes avançam no tabuleiro, é esperado que a representação seja menos que representativa. E isso não é uma distorção do conceito grego original. A democracia direta ateniense era restrita aos “homens livres”, como na república dos coronéis ou na América de Franklin. Em 25 de abril de 2.414 anos atrás, a oligarquia de Atenas dá um golpe apoiada por Esparta (a ditadura militar da época), sem uma lágrima derramada pelo patriciado local.
A relação crucial é entre o Estado e interesses com bala na agulha, círculo que conserva no trono os atores de sempre. Universalizar o sufrágio democratiza a escolha dos representantes, mas, não, o mecanismo de decisão. É como o valor universal da fraternidade: útil apenas pros que são mais irmãos que os outros.
E a antidemocracia? Toda ditadura moderna serviu como antídoto a um revés no sufrágio universal. O que não é necessariamente ruim, pois pode romper uma hegemonia opressiva. E então chegamos ao século XX e aos fascistas, e vemos que “não necessariamente ruim” é eufemismo, no mundo real, para péssimo. Ao fascismo europeu corresponderam as ditaduras latino-americanas de direita. Não é à toa que o 1º. de abril, dia da mentira, seja o dia D do golpe militar no Brasil e do franquismo espanhol. Aprofundaram-se as regalias de uns poucos pela supressão dos mecanismos de oposição, não só as eleições, mas a manifestação pública da opinião, instrumento último e útil, quando o povo sabe que vai mal representado. Tortura e assassinato são só as cenas sangrentas do mesmo filme de terror. Sem querer atiçar ânimos anticomunistas (ultimamente ressurgindo das tumbas), isso é bem diferente de um povo do Caribe que se governa ostentando os melhores indicadores sociais das Américas.
O que o Brasil lamenta nos 50 anos do golpe militar é correlato simétrico de se comemorar os 40 anos do 25 de Abril português. Ditadura posta, ditadura morta. Desvios mentirosos do caminho democrático, que sabemos ser bem menos que reto. 
Do lado de lá como do lado de cá do Atlântico, podemos (sim, hoje podemos) ir à rua denunciar o confisco do Estado por gente que já comeu demais. As jornadas de maio lá, contra a Troika do Euro e as jornadas de junho aqui, contra a privataria que vampiriza o transporte e outros serviços públicos. Gabriel Garcia Márquez disse, comentando o 25 de Abril, que “a situação de Portugal é parecida, com suas vantagens e perigos, com a de um país da América Latina”. Realista pra lá de fantástico.

Publicado em O Tempo, 24/04/14

domingo, 6 de abril de 2014

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O golpe, os índios e nós




Publicado em O Tempo, 04/04/2014, p. 21
Beto Vianna, linguista

Em 1556, nosso primeiro bispo, de gostoso nome Sardinha, foi devorado pelos índios caetés. Sardinha combatia os hábitos selvagens adotados pelos colonizadores, como o tabagismo e o gosto pela carne índia (não à mesa, mas na rede). Comer o prelado autoritário foi, então, um ato político. E o revide veio duro. Anos depois, o governador-geral manda trucidar os caetés.
Ditadura, nunca mais. Mas entre o repúdio ao golpe e as patéticas manifestações saudosistas, temos mais do que nos envergonhar. É longa a história de opressão física e cultural das gentes da terra e daquelas trazidas à força da África. Recentemente, um blog indígena perguntou aos membros da Comissão Nacional da Verdade (que investiga os silêncios da ditadura): “por que só tratam de mortos e desaparecidos não indígenas?”. A CNV incluiu o tema na pauta, mas a pergunta gerou surpresa.
Além de um imaginário da resistência povoado de lamarcas e sequestros de embaixadores, custamos a reconhecer o caráter político da luta indígena pela terra e por seus modos de vida. E muitos de nós ainda cremos em um país “desenvolvido e integrado”, tom que marcou a política genocida do regime militar. Gente pelada falando língua diferente (se ainda fosse inglês, né?), fabricando o próprio utensílio e catando aquilo que come em imensas áreas “não produzíveis”, não combina com “crescimento” na cabeça de muita gente.
Em 1967, o general Golbery publica “Geopolítica do Brasil”, propondo a integração para o crescimento. No organismo Brasil, as áreas “despovoadas” (onde vive a maioria dos índios) são a parte doente, que exige doses concentradas do remédio. Logo depois, a ditadura lança o Programa de Integração Nacional, que incluiu a construção de uma malha viária no norte, “reservada (...) faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para (...) se executar a ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica”.
O plano caiu sobre o índio como a bíblica chuva de enxofre. Seus resultados são responsáveis pelo genocídio dos anos 70 e 80, com órgãos como o Incra e a própria Funai favorecendo o massacre de aldeias inteiras, assassinato, tortura, escravidão e outras violências praticadas contra, afinal de contas, pessoas, não é mesmo? As frentes de expansão (colonos, madeireiras, mineradoras) sujaram as mãos, bem como funcionários do governo. Os índios tentaram se defender, migrando ou peitando as invasões, e já denunciavam, desde então, a barbárie. Por que, então, não escutamos?
A descoberta de campos de concentração indígena em Minas Gerais, durante a ditadura, com uma lista de mortes e maus tratos de arrepiar os cabelos, mostra que o terror não foi apenas subproduto do “sonho desenvolvimentista”. É desprezo congênito por quem vive de modo diferente. Assim como repudiamos a volta da ditadura, é preciso prestar atenção nas situações de violência que os índios vivem, ainda hoje.