segunda-feira, 26 de março de 2012

Pero las hay

Beto Vianna
Publicado em O Tempo, 23/03/12, no debate: “Formas preconcei-tuosas, como as que se referem pejorativamente a ciganos e judeus, devem ser retiradas dos dicionários?”

 
Em seu “Os Estatutos do Homem”, Thiago de Mello diz: “Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas”. Para o poeta, que tem por ofício a palavra, liberdade é algo tão fundamental no relacionamento humano, que ultrapassa o registro escrito ou falado. É para ser vivido. E o que dizer quando o destino da palavra é ferir, humilhar, degradar a convivência?

Se atentarmos unicamente à função descritiva do dicionário, sou contra banir insultos, bem como devem ser mantidas a pornografia, a desgraça e a blasfêmia, doam a quem ouvir. Mas essa é só metade da história. O que me incomoda é a gritaria contra qualquer coisa que cheire a “politicamente correto”. Renomados formadores de opinião, gente que deveria ter mais cuidado com o que fala, usam suas poderosas tribunas midiáticas para denunciar a patrulha linguística, a chatice e a hipocrisia (da esquerda, por supuesto) que quer intervir na liberdade inalienável do indivíduo de ferir, de humilhar, de degradar. Compare essa liberdade com aquela acima, do poema de Thiago de Mello. Nem de longe é mesma palavra.

Quem propôs suprimir do dicionário definições insultuosas, ingenuamente se esquece de que o dicionário opera em um nível diferente (paralelo e, não, acima) de nossas escolhas vocabulares. Mas os que utilizam esse absurdo pontual para denunciar um complô linguístico do Grande Irmão prestam um desserviço pernicioso à convivência entre as pessoas, à normalização da diferença, que é o esforço que, enquanto humanidade, precisamos continuamente fazer.

A linguagem é um espaço de mudança. Palavras mudam quando mudamos de desejo, de preocupação. E o inverso também é verdadeiro: ao decidir usar certas palavras ao invés de outras, contribuímos para que nossos desejos e preocupações mudem. Muitos insultos dirigidos a negros e índios no auge da colonização, nos séculos XVII e XVIII, caíram em desuso e não são mais dicionarizados. E antigo não quer dizer pior. Ciganos e judeus eram mais bem tratados na Europa muçulmana de mil anos atrás que na Europa cristã dos anos 1930. As mulheres têm uma história ainda mais permanente e internacional de depreciação verbal, um vocabulário ofensivo que só em parte soa impossível aos ouvidos de hoje. E aos dicionários.

Em vez de denunciar um improvável expurgo das nossas palavras, devíamos (se queremos que liberdade seja algo “vivo e transparente”) nos esforçar bravamente, noite e dia, para que as palavras que ferem, as palavras que humilham, que degradam, desapareçam do pântano enganoso das nossas bocas. Estaremos, assim, contribuindo para melhores edições futuras, mais solidárias e conforme nossas escolhas, do Pai dos Burros.