terça-feira, 1 de junho de 2010

A importância de ser Ernestos

Fiquei na Ilha sete dias. Não, oito. Quando embarcava de volta, a companhia panamenha ejetou-me da nave e lotou-me no vôo do dia seguinte, oferecendo abrigo num hotel très chic. Hospedeiros e mordomos trataram-me duro como o duro que sou, um zé nada vivendo seu dia ilegítimo de fausto. À honra ferida juntou-se o pasmo de testemunhar os cubanos - ó heróis de minha infância! - lustrando botas cara-pálidas. Meu mundo acabou de desmoronar quando dei de cara, no hotel, com um grupo de turistas belo-horizontinos. Os patrícios tinham ido ali variar de Guarapari, aproveitar os maravilhosos spots da Ilha para aventuras marítimas. Pra tornar a coincidência mais inverossímil, eu conhecia um deles, do bairro Anchieta, que veio com essa pra cima de mim: “O que achou da Ilha (riso sádico)? Será que eles güentam segurar por mais tempo (riso sádico de novo)? Pra mim, não dura mais um ano (riso sádico e libidinoso)! Eu ia responder o quê? O cara parecia comentar um filme pornô!

Mas é o que rola em Cuba, e não só nos pontos quentes de Havana, pois o turismo é a política econômica e oficial do governo. Em outra situação, bastaria repetir a ladainha de que “turismo sustentável” não é bem assim, que uns interesses são mais iguais do que outros, que siempre se perde la ternura ao abrir os atrativos à visitação. Mas na Ilha são outros 500 anos. Com ou sem revolução, Cuba tem um passado depravadíssimo na relação estabelecida com os seus visitantes, e essa cultura arraigada é difícil de desmontar, com ou sem revolução. A favor dos cubanos tem a economia planejada, mais fácil de aplicar uma política global que minimize os contra e enfatize os prós do turismo. E como melhorar a vida das pessoas é - pra mim, não só em tese - objetivo sincero do governo, podíamos esperar menos impacto negativo em Havana do que, digamos, em Itabira.

No congresso de antropologia a que fui (bela desculpa pra viagem), tinha uma sessão inteira dedicada à antropología del turismo. Muito acadêmico do governo estava lá, todos identificando perfeitamente bem os eternos problemas gerados pelo turismo no terceiro mundo. Mas passou em branco justamente o modo tipicamente cubano de receber, que nasceu e prosperou na relação de amor-e-ódio da Ilha com seu imperial vizinho, os EUA. Os cubanos, talvez pela proximidade, e nós estrangeiros, talvez por educação, nem tocamos no assunto em plenário. O caso é que, além de gringos, éramos também turistas, e portanto sentíamos essa relação na pele (como você pode ter capturado, éramos menos discretos sobre o assunto entre nosotros).

Desde seus líderes primordiais, desde Jefferson, a cúpula ianque faz propaganda interna de Cuba como um pedacinho seu. Não como terra a anexar, ou povo a civilizar, mas uma extensão natural da Branca Casa Grande. Jardim, horta ou lavabo dos EUA, dependendo de que aspecto queremos iluminar com a metáfora. Essa lengalenga legitima, pro cidadão-médio americano, o ganho estratégico na navegação e no açúcar (desde antes de Célia Cruz) da elite política e comercial. Em troca da desinformação, pra dizer o mínimo de tamanha safadeza, os americanos ganham um paraíso caribenho a apenas 140 milhas da costa. Pergunte a Michael Corleone: o turismo cubano é unha-e-carne da exploração humana, num grau que ultrapassa nossos piores pesadelos de colonizados e conforma igualmente os modos de ser de americanos e cubanos.

A Revolução também tem um papel aí. A mistura do impacto do Movimiento 26 de Julio nos cubanos, com a dificuldade econômica elevada à estratosfera pela política de sabotagem continuada dos EUA (que inclui, entre outras pornografias, o bloqueio), fez de Cuba um país dos anos 50, até hoje. Não digo isso com um pingo de crítica. Não acho nossos anos 2000 mais progressistas que qualquer outra época, a não ser no sentido corriqueiro que a internet, o massacre no Iraque e o grupo musical RBD sejam uma evolução do pombo-correio, da guerra do Vietnam e dos Beatles. O problema é que a cultura - em sua imposição histórica e estética - dos anos 50 são um pesado marco para os cubanos. Imagine nós: o que significa, para a atual vida dos brasileiros, os anos dourados e JK? Ditaduras, tropicalismo, diretas-jás e mensalões passaram como um rolo compressor histórico, re-conformando nossa vivência cultural e política.

Mas Cuba tem um pré e um pós, e essa linha divisória marca a pior época de sua relação com o turismo, a atitude servil de cubanos preparando drinques, cantando e prostituindo-se para visitantes endinheirados. Quando se investe pesado em turismo agora, como alternativa necessária de entrada de grana no país, o que os cubanos sabem fazer, do fundo de seus corações, é vender um paraíso tropical, em corpo e alma, para gente como o meu amigo belohorizontino, que ainda por cima aposta no fracasso de seus anfitriões.

Dois turistas americanos compreenderam publicamente essa situação, e lutaram febrilmente contra ela: Guevara e Hemingway. O Che compreendeu, com mais lucidez que Fidel, que a questão no país era menos a de construir o socialismo que romper a longa história de uma gente que não vive para si. Che foi à África dizer, a plenos pulmões, que os povos da América Latina e Caribe, nem semelhantes às culturas que lhes deram origem e nem iguais à civilização eurocêntrica, deveriam construir a si mesmos, não refletindo as relações econômicas mundiais - inventadas nos EUA, em bocejante extensão do projeto europeu -, mas a partir do mais cândido bom senso: a justiça. Darcy Ribeiro não errou feio ao dizer que esses povos novos são “mais isentos e livres, porque não fundam seus projetos nacionais de progresso na exploração de outros povos”.

Hemingway amou a vida e o convívio cubanos. Para esse escritor, dificilmente socialista no corrente do termo, um cubano é parte integrante da aventura humana, tão autêntico em seus sofrimentos e desejos quanto qualquer outro, e igualmente merecedor da nossa ternura. Isso é muito, demasiado, até, para um gringo morando em Cuba nos anos 50. O cubano e a Ilha - o humano e seu meio, o velho e la mar -, são em Hemingway entidades em permanente luta, mas ambos dignos em sua existência, ambos admiradores da dignidade do outro. Guevara e Hemingway são iluminados, visitam outros países e outras gentes sem arrancar um pedaço para si e ainda deixam divisas incomensuráveis. Li certa vez que a essência humana é egoísta, e portanto a fraternidade deve ser continuamente doutrinada. Duvido horrores disso. Se há algo natural no humano, aliás, em todo mamífero, é a violenta necessidade de estar perto do outro, de curtir a aprovação e a afeição do semelhante. Agora, para alargarmos generosamente o conceito de semelhante, basta um pouquinho de ernestidade.

Publicado no Cometa Itabirano, maio de 2007

Um comentário:

  1. "He always thought of the sea as la mar, which is what people call her in spanish when they love her. (...) The old man always thought of her as feminine, as something that gave or withheld great favors. (...) The moon affects her as it does a woman, he thought".
    Hemingway, em The old man and the sea, 1952

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