domingo, 11 de abril de 2010

Mudança de hábito

Susan Oyama
Tradução: Beto Vianna - Revisão: Cristina Berio

"Há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que gostam de dicotomias e aquelas que não gostam. Eu sou do segundo tipo". (piada contada por um amigo)


Há uma geração, a posição politicamente progressista (libertária?) sobre a homossexualidade nos EUA, era a de que a orientação sexual era aprendida. Hoje, defensores dos direitos homossexuais preferem dizer que ela é inata. Na complexa história dessa questão, argumentos legais e morais são quase sempre vinculados aos científicos, com uma tendência geral para explicações biológicas. Pela legislação norte-americana, por exemplo, certos grupos biologicamente definidos têm direito a proteção especial. O argumento “da natureza” é igualmente usado para minimizar o papel da escolha na orientação sexual, evitando a atribuição de pecado. Chamar algo de “biológico” (ou genético, natural, inato), não é fazer uma simples afirmação científica. É também se pronunciar sobre a relevância da experiência e das condições de existência, sobre a possibilidade (e até mesmo o desejo) de mudança. O mesmo vale para os termos opostos: cultural, adquirido, ambiental.

Se algo é biológico, dizemos comumente que é também físico, pré-programado e controlado a partir de dentro, enquanto o que é aprendido é um acidente da história pessoal, um produto da mente, não do corpo. Tais contrastes deveriam levantar suspeitas como o eco de um antigo dualismo, mas continuamos aceitando sua interpenetração em assuntos sociais. Por mais veemente que seja este debate, não há um conjunto coerente de critérios para que possamos separar traços biológicos de não-biológicos. Há apenas uma profusão de indícios, alguns contraditórios, outros simplesmente obscuros.

Alguns critérios referem-se a populações de organismos, outros ao desenvolvimento individual. Uns têm a ver com a evolução, outros com mecanismos internos, e assim por diante. Tais controvérsias são sempre construídas a partir de crenças antigas e bastante gastas, não apenas sobre mente e corpo, mas também sobre forma e matéria, essência e acidente, instinto e aprendizado, bem como as mais recentes sobre evolução, genes e ambiente. Muito já foi dito sobre tais debates (às vezes irritantes). Mas pouco ganhamos com “soluções” conciliatórias mas inadequadas - ainda que soem mais respeitáveis -, em que tudo é uma mistura de natureza e cultura, de modo que precisamos discernir as proporções corretas de cada uma, ou em que os genes estabelecem o alcance dos efeitos possíveis do ambiente. Se as categorias tradicionais natureza-ou-cultura são incoerentes, como sugeri acima, tais compromissos “razoáveis” também não irão funcionar.

Tanta controvérsia poderia nos levar à conclusão de que precisamos nos “libertar da biologia” (ou dos biólogos!). Longe disso, sugiro que nos livremos de todo um aparato de hábitos conceituais que mantêm vivo o debate. Entre eles, reina inconteste a virtual deificação do gene. E não me refiro apenas à ênfase excessiva, mas à investidura de poderes quase-divinos ao DNA, de iniciar a mudança de modo autônomo (como em “os genes dirigem o desenvolvimento mas permanecem eles mesmos inalterados”) e de conter e executar planos de complexidade prodigiosa (“o programa-mestre prevê e administra o input ambiental”). O gene dá forma à matéria inerte. Imortal, o gene avança através das gerações enquanto os pobres organismos surgem e perecem. O contraponto a essa fonte interna de forma é desempenhado, no debate tradicional, pelo ambiente, fornecendo as perturbações, os detalhes mais triviais, o apoio e a matéria-prima.

E que tal se essas crenças mudassem? Vamos supor que o DNA não é um repositório de representações e instruções descorporificadas, mas, ao invés disso, uma estrutura física, tal como outras partes do corpo. Sem dúvida maravilhosa, essa estrutura funcionaria apenas por meio de sua interação com uma série de outras, de modo diverso em cada lugar, tempo e condição diferentes. Isso, aliás, é o que a biologia molecular, despida de sua retórica mais inflamada, tem nos mostrado. Vamos supor, ainda, que as operações e os produtos dessas interações - digamos, as proteínas - dependem, do mesmo modo, das condições em níveis mais altos de organização. Nesse caso, o organismo surge no cadinho dessa miríade de interações contextualmente dependentes, forma e função sendo efetivadas em estreita interdependência com o entorno; é desnecessário – é até incompreensível - atribuir a essas seqüências, por dramáticas que possam parecer, a um imóvel motor central.

Se os efeitos de outras estruturas internas, e fatores no mundo fora dos limites do organismo, são igualmente contingentes com a presença e o estado de outros com-ponentes do complexo desenvolvimental, então também não haverá uma fonte externa independente de “informação” para suprir o lado “cultural” da dicotomia natureza-cultura. Nem o DNA, nem qualquer outro participante no desenvolvimento, opera autonomamente ou controla o todo: os efeitos de qualquer fator são causados conjuntamente, dependem do restante do complexo e frustram nossos esforços de alocar responsabilidades para o desenvolvimento individual de um organismo.

Digo ainda que todas essas mudanças de hábito conceitual são apoiadas pela pesquisa biológica de um modo que a linguagem de instruções codificadas não é (e isso não quer dizer que tudo o que estou contestando pode ser testado empiricamente: como demonstrar que programas literalmente existem no DNA? Eis aí parte do problema). Mas como acontece com os sistemas – pois isso é o que eu venho descrevendo - uma pequena mudança leva às vezes a uma cascata de outras. (Às vezes. E às vezes um sem-número de mudanças não tem nenhum efeito significativo. Muitas características do organismo são estáveis em uma grande variedade de condições). Uma implicação dessas mudanças é que nenhum constituinte contém a essência do organismo, ou estabelece, sozinho, o seu destino. Não faz sentido dizer que alguns resultados já estão pré-configurados, inscritos no código nuclear, mesmo se eles aparecem com regularidade.

Nem podemos atribuir um traço individual a um interactante principal e apenas trivialmente a outros (embora pesquisas em grupos de organismos permitam afirmações quantitativas). Ou seja, ao contrário do que é afirmado dentro da persistente dicotomia natureza-oucultura, todas as características são “biológicas”, pois todas caracterizam um ser vivo. Todas são “adquiridas”, no sentido de que precisam desenvolver-se. E todas são “ambientais”, pois condições particulares são necessárias para que ocorram. Nossa visão da evolução muda, também. O discurso padrão de que apenas os genes passam à geração seguinte na hereditariedade é expandido para incorporar todo o complexo (organismo-e-ambiente) do sistema em desenvolvimento. Podemos então ver a evolução não como apenas mudanças em freqüências gênicas, mas como mudança na constituição e distribuição de sistemas em desenvolvimento.

Essa perspectiva retrabalhada não fornece respostas automáticas às questões que há muito vêm alimentando o debate natureza-ou-cultura (tal traço é inevitável? É natural, ou devíamos tentar mudá-lo?). Ela nos encoraja, porém, a ser mais claros sobre tais questões, varrendo do cenário um vocabulário multiuso e hábitos arraigados que têm acumulado tanta ambigüidade sob o tapete, por tanto tempo. A mudança serve também para impedir a inútil tentativa de responder a tais questões achando o equilíbrio correto entre o controle interno e externo (principalmente inato? Parte ambiental?), ao invés de nos debruçarmos diretamente sobre as complexidades da vida real e das incertezas e possibilidades que ela nos traz.

Sobre a autora: Susan Oyama é Professora Emérita de psicologia da City University of New York e a principal proponente da Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento. Escreveu, entre outras obras, The ontogeny of information: developmental systems and evolution (1985) e Evolution’s eye: a systems view of the biology-culture divide (2000).

Publicado no jornal O Cometa Itabirano, agosto de 2007

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